XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio XI
A PANDEMIA, O REAL E A VIDA
Andrea Rodrigues
No seu texto Transitoriedade, Freud relata a conversa que teve com o poeta Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, que mais tarde se tornaria psicanalista. Ele conta como Rilke apresentava um doloroso fastio diante do mundo (Arte, literatura e os artistas, Autêntica Editora, 2018, p.221), que seria um dos dois diferentes movimentos psíquicos derivados da caducidade. O outro seria a rebelião contra a realidade existente. Freud contesta a posição do poeta, a quem chamou de pessimista, pois associava a transitoriedade do belo com a sua desvalorização. Para ele, a transitoriedade só aumenta a preciosidade daquilo que é belo.
Essa conversa ocorreu às vésperas da primeira guerra mundial e o texto foi escrito em plena vigência do conflito, em 1915, publicado em 1916. Essa guerra foi uma das mais mortais de toda a história, tendo tido consequências globais, redesenhando o mapa da Europa e trazendo na sua esteira uma epidemia de gripe que matou mais do que o próprio conflito.
Não por acaso, com o retorno dos soldados, em seu texto Além do Princípio do Prazer (1920), Freud irá não apenas discorrer sobre a neurose traumática, mas principalmente desenvolver uma nova teoria das pulsões. Irá além, afirmando que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer. Um dos exemplos que usa para isso é o da epopeia romântica Jerusalém Libertada, de Tasso, onde o herói Tancredo mata duas vezes sua amada Clorinda, sem o saber (Editorial Biblioteca Nueva, Tercera Edición, p. 2516). Aqui Freud irá, então, não opor pulsão de vida e pulsão de morte, mas uni-los indissoluvelmente. Temos aí o exemplo do que Lacan vai chamar de tycké, a repetição em sua forma de encontro com o real, aquilo que é repetição mas não reprodução (Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, 1964).
Lacan, no seminário sobre O Avesso da Psicanálise (1969/1970), vai retomar a questão da repetição e afirmar: a repetição é o gozo. É o gozo que necessita a repetição. Ele vai além, afirmando que “o que nos interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a articular o instinto de morte. (…) É a repetição de um ciclo que acarreta a desaparição da vida como tal, que é o retorno ao inanimado (p.43).”
Será, porém, que podemos articular pulsão de vida e pulsão de morte aos conceitos de vida e morte? A proposta é tentadora, no entanto, em relação à vida e à morte, Lacan as localiza, tanto na Terceira (1974) quanto no seminário RSI (1974/1975), no nó borromeano, articulando a vida ao real e a morte ao simbólico. Na Terceira, Lacan vai dizer que o real é aquilo que volta sempre ao mesmo lugar, é o que não cessa de se repetir para entravar a marcha da carruagem (p.5), como ele mesmo se expressa, é o que se repete. A compulsão à repetição, então, estando articulada à pulsão de morte, está também ligada à vida? Lacan vai dizer ainda, no entanto, e surpreendentemente, que o analista tem por missão opor-se ao real (p.8) — creio que aqui ele está tomando o real, enquanto repetição, estando articulado ao gozo, que ele já afirmara necessitar da repetição, e ao sintoma, e sobre isso ele diz que o que seria melhor é que o real do sintoma morra (p.6). Não por acaso ele vai falar dos biólogos e, não dos vírus, mas das bactérias, e de como elas podem ser feitas de uma cepa tão resistente e forte que poderiam liquidar toda a experiência sexuada. Isso para ele é bem interessante e até mesmo cômico, toda a vida enfim reduzida à infecção que ela é realmente. E o que mais ele vai dizer sobre a vida? Por que foi que ele escreveu, ele mesmo se pergunta, a vida dentro do círculo do real? É que, incontestavelmente, da vida não sabemos mais nada além desse termo vago que consiste em enunciar o gozo da vida. É interessante notar como é exatamente nesse momento que ele vai falar do DNA, material do qual os vírus se compõem e, se não são inteiramente uma forma de vida, mas apenas um pedaço de cadeia genética, podem interferir sobre ela ao infectar nossas células.
Quanto à morte, Lacan vai dizer, tanto em RSI quanto na Terceira, que ela está do lado do simbólico. “É enquanto alguma coisa é “Urverdrängt” no simbólico que há algo a que não damos jamais sentido”, ele diz na aula de 17 de dezembro de 1974, algo que do inconsciente jamais será interpretado, como ele afirma na Terceira.
Resta o corpo, aquele que Lacan localiza no círculo do imaginário e que quando vivemos é aquilo que, pelo menos manifestamente, é talvez o mais afetado. O que pode o psicanalista fazer para manter o enlaçamento desses três registros, além de oferecer um lugar, ainda que virtual, onde os sujeitos possam falar do seu sofrimento — o que já não é pouco?
E eu falo em vírus, claro, não por acaso. Além de estarmos vivendo um certo retorno ao fascismo, sofremos no momento uma pandemia tal qual Freud passou cem anos atrás. O que podemos fazer, então, todos nós, diante desses dois males que nos assolam: o neofascismo e a pandemia? O que de melhor podemos fazer, na minha opinião, é resistir e sobreviver. A história também é feita de repetição e podemos perfeitamente nos valer daquilo que Freud aprendeu, mesmo com um século nos separando. Voltando ao texto sobre a transitoriedade, embora muitos possam não afirmar que a vida é bela, ela é sem dúvida transitória e preciosa, ou pelo menos a vida de cada um é. Como diz Caetano, “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome*”. Aquilo que Freud descreve no seu texto parece se aplicar integralmente à situação atual, portanto peço licença para uma longa citação:
A conversa com o poeta aconteceu no verão antes da guerra. Um ano depois a guerra começou e roubou do mundo suas belezas. Ela não destruiu apenas a beleza das paisagens que atravessou e as obras de arte que encontrou no seu caminho, ela atingiu também nosso orgulho pelas qualidades de nossa cultura, nosso respeito por tantos poetas e artistas, nossa esperança, enfim, por uma superação das diferenças entre povos e raças. Ela sujou a sublime neutralidade de nossa ciência, deixou nua nossa vida pulsional, desacorrentou nossos maus espíritos, que acreditávamos permanentemente domados por décadas de educação por parte de nobres predecessores. Ela tornou nossa pátria novamente pequena e outras terras distantes e vastas. Ela roubou muito de nós, o que amávamos, e nos mostrou a caducidade de muitas coisas que acreditávamos estáveis (Transitoriedade, em Arte, literatura e os artistas, Autêntica Editora p.223/224).
Freud não era um homem particularmente otimista em relação à humanidade, porém ele termina esse texto com uma mensagem de esperança no futuro que eu gostaria de deixar aqui como um voto para todos nós: “Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, talvez com fundamentos mais sólidos e mais duráveis do que antes.”
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*Veloso, Caetano. Gente. Em: Bicho. 1977