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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XII
PARADOXOS E RETICÊNCIAS
Vera Pollo

No intuito de desdobrar a máxima pronunciada por Lacan em 1953: Que antes renuncie à psicanálise aquele que não alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época, cheguei à seguinte formulação: que antes renuncie à psicanálise aquele que não estiver à altura da implicação política do discurso freudiano.

A grande subversão inerente ao discurso psicanalítico origina-se, a meu ver, da descoberta freudiana do masoquismo originário e dos desdobramentos que lhe foram acrescentados por Lacan, ao destacar as consequências de uma relação, sobretudo fantasística, em que o objeto é ativo e o sujeito é passivo. O corpo humano é o primeiro molde de seus próprios objetos, mas estes não apenas o ampliam ou o substituem, pois também o bloqueiam, o ameaçam, o obnubilam, o perseguem e até mesmo o destroem. Além disso, a fala, ao se tornar objeto imaginário ou real, degrada a função da linguagem sob mais de um aspecto.

Nos encontramos, indubitavelmente, em uma época de paradoxos, que dizem respeito às relações da fala e da linguagem. Ou, como Lacan preferiu dizer a partir dos anos 70, paradoxos que dizem respeito às relações da função da fala e do campo de lalíngua . O primeiro deles é o de uma fala que não visa obter o reconhecimento, o que configura uma palavra vazia. Ao se fazer ritornelo – meme ou mantra, se assim preferirmos -, ela se faz simultaneamente fake news. Não cessa de se repetir e isso é loucura, diz Lacan (1953) .

O segundo paradoxo é o do sintoma, na medida em que ele faz da doença a introdução do vivente na ex-sistência do sujeito. Em “O Inconsciente estético”, Jacques Rancière (2009) chama a atenção para o fato de que, assim como nem sempre existiu o termo “estética”, pelo menos não no sentido que ele tem hoje, o de um pensamento sobre a arte, nem sempre o pensamento foi sinônimo de doença.

O terceiro paradoxo é “a alienação profunda do sujeito da ciência” (Lacan, 1953), pois o homem da ciência sabe do que é capaz, mas não sabe o que quer. Herdeiros de Freud e de Lacan, jamais poderemos nos posicionar de forma “negacionista” , no sentido de não querer saber do progresso da ciência, particularmente da ciência biológica. Freud ansiou por escrever a psicanálise entre as ciências que aceitam o teorema da incompletude e Lacan (1971) chegou a localizar o psicanalista entre o homem da ciência e o da arte, alertando-o para a necessidade de aprender com um e outro, uma vez que a psicanálise se reinventa a cada caso e possui poucos instrumentos.

Recentemente tive a oportunidade de comparar Bolsonaro à personagem literária criada por Alfred Jarry sob a denominação de Père Ubu. Jarry é um poeta, romancista e dramaturgo simbolista francês do final do século XIX, considerado um dos ou até mesmo o pioneiro do Teatro do Absurdo. Ele alega ter inventado a Patafísica, ciência das soluções imaginárias e da Lei que regula as exceções. E, claro: ela se expressa mediante uma linguagem aparentemente sem sentido, nonsense, uma maneira anárquica de tentar explicar o absurdo existencial.

Ubu Rei é a primeira peça da quadrilogia Pai Ubu . Resumidamente, é a história de um casal – Pai e Mãe Ubu – que armam um plano para assassinar o Rei da Polônia, tarefa em que terão êxito, ajudados pelos filhos e pelo capitão Bordadura, a quem outorgam o cargo de ministro, antes de o trair. Após o assassinato, Pai Ubu se autoproclama rei e se põe a conquistar a simpatia do povo, para transformar-se, em seguida, no cruel tirano que condena à morte todos que discordam das suas gananciosas ideias. Seu mantra principal é: “Matem! Matem! Matem!”

Descrito como covarde, usurpador, mesquinho, aproveitador e desonesto, ele é considerado um dos primeiros anti-heróis do teatro, pela ausência de ética aliada à presença de uma estética grotesca ou “ubuesca”, caricatura da extravagância individual colocada a serviço do poder exercido de forma grotesca. Márcia Tibury o comparou ao sujeito dessubjetivado, aquele que não tem dúvidas e conjuga em si três vazios: o cognitivo, o da sensibilidade e o da ação.

Lembremos, então, o fim dessa quadrilogia trágica. Bougrelas, filho do rei da Polônia, que tivera pai e mãe assassinados, surpreende Pai Ubu, que é preso e condenado à morte em Paris, para onde será então enviado. Porém, antes que desapareça de cena o navio que o conduz, na companhia dos guardas e da Mãe Ubu, ouvem-se paradoxalmente as palavras finais de uma canção: A virtude encontra sua recompensa… (reticências)

Para onde nos levarão as reticências?

Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 2021.

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[1] Tal como Lacan propõe em A terceira (1974): o que permite que o voto (voeu) seja também o querer (veut) …” o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo que um grupo faz de sua experiência do inconsciente”.
[2] Observem que ele não usa o termo psicose. É a loucura ambiente da palavra vazia, em que vivemos hoje.
[3] Termo com que se tem adjetivado o atual presidente da República e seus ministros que se opõem sistematicamente às advertências da Organização Mundial da Saúde com vistas à prevenção e ao combate do vírus Covid-19, além de insuflarem um movimento social anti-vacina. Em 1974, na conferência A terceira, Lacan chegou a dizer “…desde que o real tem o apoio do discurso da ciência, o futuro do analista está na dependência do real, do advento do real.”
[4] As quatro peças são: Ubu roi, Ubu cocu, Ubu enchaîné, Ubu sur la butte. Em tradução aproximativa teríamos: Ubu rei. Ubu cornudo, Ubu aguilhoado e Ubu no promontório.

Notas e Referências

FREUD, S. (1927) “O Problema econômico do masoquismo” in Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972-79.
JARRY, A. Ubu. Préface de Noël Arnaud. [Ubu roi, Ubu cocu, Ubu enchaîné, Ubu sur la Butt. Paris: Éditions Gallimard, 1931/1978.

Há pelo menos duas referências de Lacan à obra de Alfred Jarry. Em Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, ele escreve: “se nos permitirem recorrer à calorosa animação do Witz,  nós o ilustraremos em sua máxima opacidade pelo talento que guiou Jarry na descoberta da condensação de um simples fonema suplementar na interjeição ilustre: Merdre. Banalidade requintada de lapso, de devaneio e de poema, uma letra bastou para dar ao mais vulgar dardejamento em francês o valor joculatório, que atinge o sublime, do lugar que ela ocupa na epopeia de Ubu: o da Palavra de antes do começo.” (Lacan /1998, p. 667) Em outra referência, Lacan (1971) cita as palavras de Ubu rei: “Viva a Polônia, se não houvesse a Polônia, não haveria poloneses!”, parafraseando-o: “Viva a metáfora, se não houvesse a metáfora, não haveria metonímias!”

LACAN (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
———–(1971-72) Seminário O saber do psicanalista. Não estabelecido. Algumas lições foram publicadas no livro Estou falando com as paredes. Conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.
———–(1974) “A terceira” in Cadernos Lacan, volume 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
TIBURY, M. Comentário falado em Instagran promovido por Antonio Quinet, em agosto de 2020.
RANCIÈRE, J. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.

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