XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio XVI
O QUE SERÁ, QUE SERÁ?
Adriana Grosman
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será (À Flor da Terra), Chico Buarque
Aos poucos a música pôde ressoar novamente no corpo, produzindo um movimento, depois da parada ou pancada diante das notícias, seguida das mortes, incontáveis corpos e despedidas…o som chega aos ouvidos na voz do Chico Buarque e vai soprando ao corpo algo a dizer.
Da notícia: psicanalistas são arrebatados de seus consultórios do dia para a noite, tendo que responder de outras formas a suas demandas diárias, um Real lá fora, uma espécie de vírus que não permite que brinquemos, não o escutando.
Incrivelmente, as análises continuaram vivas, sem dúvida uma virada na prática dos analistas, prática que ainda estamos tentando saber; experiência vivificada, certamente pela práxis que nos é rica, teoria da prática, construída ali em ato. Provavelmente, ainda pelo desejo do analista, que diferentemente dos outros desejos é produto de uma análise e deixa algo do saber-fazer com o “não tem tamanho”, misterioso território que a psicanálise se ocupa.
A partir daí, há algo a-fazer? Lembrar da vida.
O que será das lifes? Muitas lives em resposta, sintomas, falas sem dizer, uma procura por falar numa tentativa de alcançar o outro, esse afastado, de fato. A pandemia nos põe online e coloca à prova o nosso truque de curar, agora sem fio, na tela ou na linha, a postos, por um fio, mas, enfim; analista (a)live!
Pensar na vida não é algo simples, atolamos na ideia de vida, nos lembra Lacan[i] (1975).
“A vida, se pode dizer, apesar do uso que dela fez Freud, tem relação com aquilo com o que não há nada a fazer, com o que passa por sua antinomia, com a morte. A morte, pensemos o que pensemos, é puramente imaginária. Se não existisse o “corpo” [corps][ii], se não houvesse cadáver, o que nos faria a ligação entre a vida e a morte?” (p. 116). Em A Terceira, Lacan[iii] (1974) localiza a vida, ainda de forma mais problemática, de modo topológico no nó borromeano, no nível do círculo do Real e diz, “da vida não sabemos mais nada”, ela está assim no campo do impossível.
As tentativas de resposta à vida, desta forma, são muitas vezes catastróficas, os sintomas ajudam a equilibrar o sujeito para se aguentar na sua dor, mas quando o vírus sobe à superfície, deixando-se à mostra, os sujeitos ficam esvaziados e suas palavras vão sendo silenciadas, e não podem ser paradas, parando assim um percurso, Life.
Esquecemos facilmente que sofremos da língua, como seres de linguagem, pela desarmonia das palavras; sofremos da desumanização, “De saber que as palavras não são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objetos equivalentes entre si, todos irmanados na sua ilusão. As letras da palavra cavalo não galopam, nem as do fogo bruxuleiam”[iv](Mãe, p. 42).
As palavras ficam impotentes, ou dizem dessa outra lógica “ciência do Real, a lógica, que só pôde ser trilhada a partir do momento que se pode esvaziar, suficientemente as palavras de seu sentido, substituí-las por letras, pura e simplesmente: a letra é, de alguma forma, inerente a essa passagem ao Real”[v] (Lacan 1973-74, p. 189).
O Real é estritamente o que não tem sentido. “O que não tem tamanho”.
E as palavras esvaziadas de seu saber, numa parada de sentido, “do sentido que nunca terá”, cria outro movimento, outra lógica que pode ser construída a partir de um longo trabalho, quando há analista.
Há ainda, assim, o desumano e o vazio da vida que nos põe a trabalhar, a partir de um certo desejo. Convido-os ao trabalho, a algo-dizer no nosso encontro nacional, ‘O Sintoma e o Psicanalista’, seja da topologia, da clínica ou ainda do seu lugar político. Como ato preliminar, pergunto: o que diferencia o desejo do analista, que avista o Real e a partir daí orienta-se enquanto clínico, deste encontro com o vírus Real que nos toca a todos?
Desejando a todos, uma presença viva e estilosa!
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[i] Lacan, J., (1975). Jornada de Cartéis. Texto inédito. p. 116.
[ii] Corps: século XII: o corpo humano depois da morte. Entre aspas no original (N.T.)
[iii] Lacan, J., (1974). A terceira. Texto inédito.
[iv] Mãe, Valter Hugo. A desumanização, São Paulo, biblioteca azul, 2017. p. 42.
[v] Lacan, J., (1973-74). Os não- tolos vagueiam, publicação não comercial, salvador, Bahia, 2016, p. 189.