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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XVII
POR CAUSA DA PESTE[1]
Beatriz Oliveira

Para este prelúdio, retomo algumas passagens do texto que escrevi para conferência apresentada na Jornada de Abertura do segundo semestre do FCL-Belo Horizonte em 14 de agosto de 2020 cujo tema foi: “A trança da vida e da morte: 100 anos de Além do princípio do prazer”. Há um ano atrás nos espantávamos pela notícia de 100.000 mortos pela COVID-19 e por uma política genocida. Hoje, em junho de 2021, passamos de 500.000 mortos. Essa é a peste que mata.

Há 100 anos atrás, em dezembro de 1920, a humanidade assistia acabar uma grande pandemia: a gripe espanhola. Estamos atravessando outra peste, globalizada pelos acessos entre países, viralizada pela internet e com danos imprevisíveis para os laços sociais. Há 100 anos também, Freud publicava o que veio a ser seu texto de virada para a teoria psicanalítica “Mais além do princípio do prazer”.  Pergunto: o que mudou nestes cem anos em nossas saídas para estabelecer os laços civilizados, ou ainda, manter um desejo pulsante de vida diante da irrupção de algo tão mortífero como o que temos atravessado? De acordo com Freud, as saídas para o mal-estar são particulares…. E os laços coletivos, como ficam?

Parece-me que retomar esse texto freudiano neste momento é uma boa maneira de avançar no tema do próximo Encontro Nacional, adiado para este ano justamente pelos problemas que a pandemia impôs, qual seja: “O sintoma e o psicanalista: topologia, clínica e política”. Diante dos fatos com que estamos lidando nestes tempos pandêmicos, sustentar a ética da psicanálise se torna mais que necessário: se torna urgente, para que a psicanálise não sucumba aos efeitos de um discurso totalitário que uniformiza os modos de gozo.

“Eles não sabem que estamos trazendo a peste”. Esta famosa frase de Freud ao chegar nos EUA para suas conferências na Universidade de Clark indica o caráter subversivo e crítico da lâmina cortante da psicanálise. Uma peste que não se submete aos discursos dominantes e alienantes que apaziguam o sujeito das tensões e conflitos que sua verdade mais íntima produz. Uma peste que faz viver.

Há cem anos Freud nos brindou com seu achado demoníaco que nos faz “perder a cabeça”, enigma para toda cura da neurose ao se impor como resistência que se repete como compulsão a não sair do lugar. Achado, que nos faz continuar dormindo – tal como a função dos sonhos – ou achado que nos mantém acordados, insones tal como a peste que assola Macondo em Cem anos de Solidão que não os deixa dormir a ponto de sofrerem do esquecimento?[2] Seria a pulsão de morte mais um vírus dessa peste que não se deixa domesticar, que insiste em se manter o avesso do discurso do mestre, levando os psicanalistas à radicalidade da ética de seu ato a cada caso? Seria esse vírus nossa verdade mais íntima?

O texto sobre a pulsão de morte já adianta o quanto o mal-estar e a insatisfação são produtos permanentes do fato de se estar vivo. Esse é o ponto que me parece mais demoníaco, para usarmos o termo freudiano: que força é essa que nos impede de bem viver, de amar, de sustentar um desejo ou alcançarmos uma satisfação? Por que a vida nos parece muitas vezes tão difícil de suportar, de usufruir, de levar adiante no trabalho, no amor ou sozinhos?

Não por acaso Freud destaca tanto a compulsão à repetição como índice desse obscuro impulso demoníaco que nos invade e que atravanca a vida do sujeito: um gozo que não se rende à linguagem, posto que provocado por esta mesma linguagem, que não se deixa frear, que resiste a se ligar…  O cerne do que se repete na experiência psicanalítica, o retorno do que insiste em não se escrever:  o acidente, o barulhinho, a pouca-realidade, que testemunha que não estamos sonhando. (Lacan, sem XI, p. 61) O que nos desperta, dirá Freud, é o Trieb, a pulsão, essa força constante que se apresenta como impossível de ser satisfeita: contorna o “trou”, o furo onde situamos o objeto a, causa de desejo: Real.

O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só existe um lugar-tenente. Lá está o Real que comanda, mais do que qualquer outra coisa, nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós (Sem XI, p.61).

 

Assim nos damos conta de que a criação ex-nihilo que engendrou um sujeito desejante, também produziu aquilo de que o neurótico foge como “o diabo da cruz”: a existência mesma deste furo. Em outros termos: a incompletude do Outro, ou a constatação de uma cópula impossível entre a palavra e a coisa, entre Um e Outro. Signo do que se cifra de algum Real ao qual responde – no percurso de uma análise, não sem trabalho, não sem embaraço – Há do Um.

Vejam onde Lacan localizará a vida ao desenhar seu nó borromeu, no seminário RSI:

Quais são os buracos que constituem, por um lado, o Real, e por outro, o Simbólico? É o que, seguramente, será preciso examinar de muito perto. Pois alguma coisa abre-se a nós que, de alguma forma, parece evidente:  esse buraco do Real, a se designar como vida. Foi igualmente uma vertigem a que o próprio Freud não resistiu opondo instintos de vida aos instintos de morte. Observo que, a se interrogar por nosso nó quanto à estrutura necessária a Freud, é do lado da morte que se encontra a função do Simbólico (Aula de 17 de dezembro de 74).

 

Ora, essa formulação de Lacan me parece coerente com o que ele já adiantara com tiquê e autômaton: é o Real que desperta, que implica que o sujeito saia da inércia de um gozo mortífero cujo sentido infinito proporcionado pela cadeia significante, pela jouissance (o gozo do sentido), impede que uma neurose chegue a seu termo sempre na busca de uma volta a mais pelo Outro, pelo sentido, pelo sofrimento fantasmático… O Real provoca o ato do falasser, a cada vez… Mas por que é tão difícil sair disso, desse gozo viscoso que nos angustia e nos faz recuar? Por que o sujeito se recusa a ver que esse furo é causa de seu ato de saída, tanto quanto fora motor de sua entrada na vida enodando Real, Simbólico e Imaginário? Aí me parece onde se encontra a ética da qual o psicanalista não deve recuar: no Real que engendra o ato do psicanalista. Real, de onde se deduz a topologia do inconsciente que se atualiza na clínica da psicanálise orientada pela política da falta-a-ser.

Voltamos então aqui à questão do início: se as saídas são singulares, como ficam os laços coletivos? Será que a singularidade de cada final de análise permitiria uma nova invenção de lidar com o mal-estar na civilização?

Concluo esse prelúdio evocando uma frase que é um aporte aos debates de nosso próximo Encontro Nacional: “A resistência da psicanálise está à mercê do psicanalista e, cada vez que o psicanalista retrocede de seu ato, a psicanálise se encontra ameaçada” (Soler, C., Madrid, 17/04/2021)[3].

É urgente que, ao contrário do vírus mortífero, se prolifere a peste da psicanálise.

São Paulo, agosto de 21

Um ano e cinco meses de pandemia.

______________

[1] Agradeço à colega Sandra Berta pela sugestão do título, que lhe ocorreu após a leitura deste prelúdio.

[2] “Uma noite, na época em que Rebeca se curou do vício de comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles acordou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. Sentou-se alarmada, pensando que tinha entrado algum animal no quarto, e então viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo e com os olhos fosforescentes como os de um gato na escuridão. Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença cuja ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a desterrarem-se para sempre de um reino milenário no qual eram príncipes. Era a peste da insónia.//  Ninguém entendeu o pânico de Visitación . “Se a gente não voltar a dormir, melhor”, dizia José Arcadio Buendía, de bom humor. “Assim a vida rende mais.” Mas a índia explicou que o mais temível da doença da insónia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava com se estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e as noções das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado.” (Gabriel Garcia Marques, Cem anos de Solidão).

[3] https://colegiodepsicoanalisisdemadrid.es/nuestra-resistencia-conferencia-colette-soler/

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