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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XVIII
ARTEDIZENDO O TROUMATISME
Daniela Scheinkman Chatelard

Cenário em 1918: Gripe Espanhola que devastou a Europa até 1920, ano em que Sigmund Freud publica O mais além do Princípio do Prazer; e que falece Sophie Freud em janeiro, aos 27 anos, vítima daquela pandemia. Cenário em 2020/2021: COVID 19. Entre tempo, outras pandemias invadiram o habitat humano, o organismo, deixando suas cicatrizes. Mas também deixando marcas no corpo pulsional, no troumatisme da linguagem: furo do trauma, acontecimentos advindos de um real avassalador, marcando uma subjetividade, uma era, uma temporalidade. Eis a política, a política do inconsciente, do inconsciente enquanto discurso do Outro, a Outra cena, o que não cessa de se inscrever no troumatisme dos corpos.

           Em novembro de 1969 Lacan deu início ao seu célebre seminário 17: O avesso da Psicanálise. Suas formulações foram certamente marcadas pelas circunstâncias históricas que deixaram suas pegadas não apenas no meio intelectual e político francês, mas sobretudo no meio psicanalítico. O avesso, o empenho de Jacques Lacan na construção de uma teoria do discurso, como forma de estar na cultura, formas de laços no mal-estar da civilização. Com a teoria dos quatro discursos, Lacan deu um passo adiante na transmissão de seu ensino, articulando o campo da linguagem ao campo do gozo. “Não há discurso que não seja do gozo, ao menos quando dele se espera o trabalho da verdade”[1]. Foi o reconhecimento desta relação que fez com que Lacan ao propor a retomada da psicanálise pelo avesso pudesse questionar o lugar da psicanálise na política. Em A instância da letra no inconsciente Lacan nos adverte a partir de Freud: “A experiência Psicanalítica não é outra coisa senão estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de nossas ações” (p. 518). E, em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, (p. 594) encontramos sob sua pluma que o analista em sua política se encontra em sua falta-a-ser.

Em o Seminário Mais ainda, Lacan retoma os discursos, mas dá ênfase à linguagem como operadora, e que opera sobre o organismo fazendo corpo; corpo como produto transformado pelo discurso. O organismo se torna um corpo sintomático e pulsional no falasser. Corpsificação – incidência de incorporação da linguagem sobre a libido e sobre o gozo. Joui-sens, sens-joui, j’oui sens, várias formas homofônicas, para falar das palavras, retomando Breton: as palavras fazem amor[2], a fuga do sentido, no que escuto de sentido.

Se contou um, uma primeira morte, em março de 2020, há um ano e cinco meses, hoje, no parecer do infinito desta contagem, no desdobramento transfinito dos uns, das cepas e das variantes, contamos mais de 580.000 uma contagem que não cessa de se contar, de se inscrever, no incontável da angústia, do número que esbarra no impossível da linguagem, que cai sob a foice do tempo, sob a foice do troumatisme. Mesmo que com Lacan, saibamos, não existe relação sexual, o humano não sobrevive sem os enodamentos e variantes do amor, do enamoramento, do amódio. O trabalho de luto é um processo que se prolonga após as devastações de múltiplas perdas, ou seja, no a posteriori, na temporalidade desta pandemia. As consequências políticas do mal-estar na civilização já marcaram as mais diversas subjetividades, mas o um a um… como Lacan na lição de 03/02/1972 em seu Seminário: Ou pior, relembrará: da análise, há uma coisa a prevalecer, é que existe um saber que se extrai do sujeito. No lado do gozo, o discurso analítico põe o sujeito barrado. É do tropeço, do ato falho, do sonho, do trabalho do analisante que resulta o saber. Este saber, não é suposto, ele é saber, saber caduco, é isto o inconsciente, traço novo na emergência no gozo do sujeito. No a posteriori desta experiência traumática, n’a temporalidade da Outra cena, a política do inconsciente, terá se inscrito e não sem consequências em torno do lapsus, da falha, do troumatisme, que terão afetados os corpos, e as ditas mansões dos ser- RSI- onde se alojam as palavras, nas costuras das palavras, na Artedizer de cada sujeito, extraindo daí um dizer que lhe seja próprio. É aí que a psicanálise faz a sua aposta, convidando a todos para Artedizer em torno do enodamento: O sintoma e o psicanalista: topologia, clínica, política.

[1] Ibid, p.66.

[2] Anotações pessoais de cursos assistidos nos anos 90. Citação de Breton do livro Les mots sans rides (As palavras sem rugas). Lacan faz alusões ao livro, a partir do Seminário, livro 20: Mais, ainda, ao elaborar sobre a linguagem como aparelho de gozo. Breton, digamos, antecipa as elaborações lacanianas dos anos 70.

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