XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio XIX
O tonel da política está transbordando
Christian Ingo Lenz Dunker
Ao introduzir seu ensino ao público leitor alemão, em 1975, Lacan faz duas afirmações de grande relevância para as relações entre psicanálise, política e clínica[1]. Sabemos que Lacan não se dava muito bem com a arte da escrita, ainda mais quando esta seguia o propósito de resumir o trabalho oral de um ano de seminário, mas em alguns textos ele segue um método de exposição baseado na produção de uma imagem central, recorrente ao longo da exposição, como uma espécie de guia alegórico. É assim como a imagem do raio luminoso em Instância da Letra, a prosopopeia da verdade em A Coisa Freudiana e com a liberdade em Direção da Cura. Na Introdução à Edição Alemã de um Primeiro Volume dos Escritos, a imagem escolhida é a do tonel das Danaides. O sentido escapa indefinidamente pelo furo do tonel enquanto as Danaides tentam enchê-lo[2]. O inconsciente, como as Danaides, trabalha sem pensar, nem calcular, nem tampouco julgar[3]. Cabe ao analista reabrir o buraco do tonel[4], ainda que o real seja transmissível pela escapada a que corresponde todo discurso[5], ou pelo diz-ser (e não da sein) que nivela todos os conceitos, nos tonéis, uns mais fúteis do que os outros[6].
Lembremos que segundo Ovídio as Danaides eram em número de cinquenta irmãs, filhas de Danos, irmão de Egipto. Tendo este último decidido que estas deveriam casar-se com seus cinquenta filhos, elas aceitam seu desígnio, mas na noite de núpcias assassinam seus noivos e jogam suas cabeças no lago de Lerna. De lá emergirá a Hidra de Lerna com suas sete cabeças. Cada uma delas, depois de cortada, origina novas sete cabeças. Mas uma das Danaides, Hipermnestra, tendo sido bem tratada por seu noivo, decide poupá-lo. Temos então cinquenta menos uma Danaides condenadas a encher o tonel furado. Portanto, não-todas Danaides estão envolvidas na reposição de gozo, só as que obedecem ao pai.
Ora, onde podemos situar o sintoma nesta parábola lacaniana? Não é no furo, que é estrutural, nem no tonel tórico do parletre (falasser), não é no gozo que escorre como sentido pelo buraco, nem no trabalho das Danaides. O sintoma tem isso tudo por condição, mas ele não se define por nenhuma destas condições, mas pelo fato de que as Danaides são muitas, mas aparentemente não se comunicam entre si. Seu trabalho é inútil, pois seu saber não se articula com o das outras. Estando cada qual ocupada em fechar o seu próprio buraco, visto de cima, como incompletude do tonel, não podem escutar, uma das outras que há um segundo furo, por onde a água escapa continuamente:
Não existe um senso comum da histérica, e aquilo com o que neles ou nelas joga a identificação é a estrutura, e não o sentido, como se lê perfeitamente pelo fato de que ela incide sobre o desejo, isto é, sobre a falta tomada como objeto, e não sobre a causa da falta.[7]
A identificação incide entre elas ou eles, em torno do desejo estrutural de cobrir o grande buraco da boca do tonel, a falta tomada como objeto, a tampa sonhada e ausente. Mas a causa da falta não é que o tonel tenha sido feito sem uma tampa, mas que ele tenha um segundo furo, por onde a água escapa. Cada qual sabe disso, mas não sabe junto com o outro. Isso acontece porque cada uma tenta colocar sua própria rolha no furo deixado pelo tanoeiro. Esta rolha é o sintoma. Composta por sua habitual cortiça em formato de cross cap, articulando sujeito e objeto a, a rolha é um acontecimento de corpo, seja ele torneado ou tonelado. Um acontecimento que precede a psicanálise:
Porque a questão começa a partir de que existem tipos de sintoma, existe uma clínica. Só que, vejam: ela é anterior ao discurso analítico e, se este lhe traz uma luz, isto é seguro, mas não é certo.[8]
A experiência da Covid permitiu retomar esta ideia primitiva de sintoma, no quadro mais geral da epidemiologia. A experiência particular de cada um, com seu sistema imunológico, com suas comorbidades, com suas condições de transmissão e recepção do vírus, é afetada diretamente pela negação, pela não aderência ao tratamento ou pela resistência psíquica às condições de prevenção. É nesse contexto que de forma inédita a Organização Mundial da Saúde por meio da Revista Lancet, fez um apelo inédito a que psicanalistas, epidemiologistas e psicólogos experimentais trabalhassem juntos no enfrentamento da negação, mecanismo descrito primariamente por Freud[9].
Mas por quais meios o sintoma, como formação do inconsciente, relaciona-se com o discurso coletivo e alienado, aqui exemplificado pelo trabalho das Danaides? A resposta pode estar neste tipo bem específico e histórico de saber tanoeiro, conhecido como metafísica, do qual tanto ciência quanto psicanálise se fazem críticos.
Quanto a meu “amigo” Heidegger [que ele tenha a bondade de deter-se], eu dizia, na ideia de que a metafísica nunca foi nada e não poderia prolongar-se a não ser ao se ocupar de tapar o furo da política. Essa é sua base. Que a política possa atingir o auge da inutilidade é realmente no que se afirma o bom senso, aquele que faz a lei: não é preciso enfatizá-lo ao me dirigir ao público alemão, que tradicionalmente lhe acrescentou o dito sentido da crítica.[10]
A definição de política é notável porque refere-se tanto a política com “p” maiúsculo, ou seja, o campo da disputa discursiva entre os diversos sistemas de interesse, quanto a política com “p” minúsculo, aquela que sai pelo buraco de cada tonel e tem cada rolha a reter-lhe o sentido e o derramamento de gozo.
A política que emergiu no Brasil, a partir de 2018, como herdeira do Integralismo e como parceira dos totalitarismos mostrou sua verdade no enfrentamento do sintoma. A sua tampa metafísica, amálgama de religião e militarismo, não apenas atrasou os cuidados necessários ao enfrentamento dos sintomas da epidemia como transbordou o tonel da política. Ao tentar silenciar uma boca muito maior do que sua envergadura, diâmetro e história, ao destruir o sistema comunitário das Danaides e ao fazer proliferar o sentido como coisa sexual, a Hidra de sete cabeças esqueceu que não-todas as Danaides estavam dedicadas ao seu tonel.
Que venha a Hipermnestra.
[1] Lacan, J. (1975) Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[2] Idem: 550.
[3] Idem: 533.
[4] Idem: 554.
[5] Idem: 556.
[6] Idem: 551.
[7] Idem: 553.
[8] Idem: 554.
[9] “To do that, we suggest a new partnership between the fields of experimental psychology, public health, and psychoanalysis—the field that first postulated defence mechanisms like denial, and still the only field that attempts to treat them. While psychoanalysts have historically resisted collaborations with experimental psychologists and epidemiologists, the time is ripe for change. After decades of insularity, the American Psychoanalytic Association has begun opening its doors and empowered constituents who have long sought more integration with experimental science and more involvement in public health.
(…)
Insular-minded psychoanalysts of the past helped bring about this disconnect, but it would be a mistake to assume because of it that psychoanalysts have no help to offer. Denial surrounds us at present; to ignore psychoanalytic wisdom under the circumstances could justly be construed as another instance of denial.” In Austin Ratner, Nisarg Gandhi (2020) Psychoanalysis in combatting mass non-adherence to medical advice. The Lancet Vol. 396, Issue 10264, p. 1730, November 28, 2020.
[10] Idem: 552.