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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio IV
HABEMUS CORPUS!
Ana Laura Prates

“Quem não é capaz de evocar Antígona em todo conflito que nos dilacera em nossa relação com uma lei que se apresenta em nome da comunidade como uma lei justa?”
(Lacan, Seminário 7: A ética da psicanálise)​

O sintoma e o psicanalista! Eis o tema que nossa comunidade analítica escolheu para orientar as pesquisas e os trabalhos para o XXI Encontro Nacional da EPFCL-Brasil na cidade de Salvador. Quando o escolhemos, ele nos parecia bastante atual, sobretudo a partir da definição de Lacan de que o sintoma é um acontecimento no corpo. Nossos subtítulos o atestavam: topologia, clínica e política. Afinal, não foi o próprio Lacan quem havia previsto nosso problema em 1967? “Como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas?”. E ainda: “Como responderemos, nós psicanalistas, à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes?”.

Mas isso foi antes. Hoje no depois, escrevo de minha casa, estando já há um mês na quarentena, e nosso tema está certamente ressignificado. Foi Albert Nguyên, em um encontro de cartel após a declaração oficial da Pandemia de COVID-19 pela OMS quem nos lembrou dessa outra referência de Lacan de 1979: “como então comunicar o vírus desse sinthoma sob a forma do significante?”. A transmissão à qual Lacan se referia, em todo caso, era a da psicanálise. Ele retomava, então, sua antiga fábula segundo a qual Freud havia confidenciado a Jung aportando em New York: “eles não sabem que viemos lhes trazer a Peste!”. Desde então, costumamos abusar das metáforas de contágio para falar sobre a transmissão da psicanálise, que se comunica sob a forma do significante, mas não somente. Em outros campos, também é comum escutarmos que algo viraliza quando pega e se espalha muito rápido. Também não é por acaso que usamos a palavra “rede” – como se usa na internet – para orientar nosso funcionamento institucional, já que ela traz a ideia de uma progressão geométrica, de algo que se propaga mais além de nossas fronteiras.

Pois bem, estamos em um momento em que nossas metáforas revelaram sua face real. E seria o caso de nos perguntarmos por que está sendo tão difícil para grande parte dos cidadãos de diversos países compreenderem a importância das medidas de isolamento social, a ponto de, a maior parte da população só ter respeitado tais medidas quando se tornaram compulsórias. Alguns intelectuais, dentre eles Agamben, no início da pandemia na Itália, tomaram essas medidas como exageradas e fizeram alusão a estados de exceção. No Brasil, de modo diametralmente oposto, nosso governo de exceção mandou os cidadãos irem para a rua e seguirem trabalhando. Parece que estamos experimentando uma perspectiva moebiana do Habeas Corpus, que literalmente significa em latim: “que tenhas teu corpo!”.

Habeas Corpus! Esse instrumento jurídico surgiu no século XIII e é usado para garantir a liberdade de trânsito, o direito inalienável de ir e vir contra qualquer abuso de autoridade que tente impedi-lo. Curiosamente, ele reconhece que para ser livre, é preciso que se tenha um corpo. Mas sabemos, com Lacan, que a liberdade traz em si os limites de seu engano. No caso da atual pandemia, a liberdade de ter um corpo que vai e vem coloca em risco a liberdade de outros corpos de continuarem vivos, e o que está em jogo é a própria coletividade. É urgente nos perguntarmos, portanto, não obstante as tentativas desesperadas dos epidemiologistas de todo o mundo de demonstrarem a importância do isolamento social, e a competência dos criadores de modelos, gráficos, esquemas, desenhos, animações, GIFs, etc., a maior parte das pessoas simplesmente se recusa a entender. Não seria essa uma incrível mostração daquilo que escrevemos no Discurso do Capitalista? Afinal, não somos nós psicanalistas quem insistimos em argumentar que esse quinto discurso, em realidade, não poderia ser considerado propriamente um discurso – que por definição implica em laços encarnados que extraem um mais-de-gozar – na medida em que ele exclui o corpo? Como avisar aos sujeitos mercadorias que, mais além da banalidade degradada da imagem de seus corpos virtuais e de suas cifras contabilizadas nas bolsas de valores, para gozar é preciso estar vivo? Como avisá-lo, assim, de modo tão repentino, como se não tivesse havido aviso prévio, que a morte não está do lado de fora, naquele outro continente tão distante, do outro lado da fronteira, do oceano, ou da guarita? Talvez, para estarmos à altura da subjetividade de nossa época, seria preciso inverter a questão de Lacan e nos perguntar: “como comunicar o significante desse sinthoma sob a forma do vírus?”.

Quando eu disse que nossas metáforas estavam mostrando sua face real, alguns poderiam concluir que estou me referindo especificamente ao vírus. Não é o caso. É evidente que o vírus em si tem uma dimensão real, com seu RNA e suas características que conhecemos graças à Ciência. A partir do momento em que ele invade nossos corpos, entretanto, estamos no espaço do ser falante. E no espaço do ser falante, não há real que não esteja enlaçado com o simbólico e o imaginário. É a partir desse enlace que o vírus se torna pandemia e a pandemia se torna pandemônio. Ou, por assim dizer, o “comportamento do vírus”, em uma dada comunidade é indissociável de sua modalidade do laço social, demonstrando porque em sociologia se fala também em “corpo social”.

O real com o qual entramos em contato, portanto, é aquele que revela um tipo de laço social francamente incompatível com a vida, chamado capitalismo de consumo. Há tempos sabemos quantos planetas Terra seriam necessários para mantermos os mesmos padrões de consumo durante este século XXI. Há tempos sabemos que, se convertermos semanas em anos, estamos para o aquecimento global como estávamos para a pandemia há um mês. Talvez mais atrasados ainda para tomarmos alguma providência. E o que estamos fazendo a respeito? O vírus, ao transitar do morcego para seres humanos, nos fez lembrar que habemus corpus, e que nossos corpos são agentes de contaminação porque há outras viralizações para além das imagens que produzimos em nossas máquinas extraordinárias. Nas experiências atuais de análise online provocadas pela pandemia de COVID-19, a impossibilidade dos encontros físicos entre analista e analisante, paradoxalmente explicitaram que ambos têm corpos que podem ser contaminados. A ausência física do analista testemunha: Ego autem corpus[1]!

Gostaria de terminar esse pequeno texto com as palavras de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer pesquisadora e professora da área do direito e da antropologia, mas também muito ligada à psicanálise, por seu longo percurso. Ela me autorizou a trazê-las aqui: “Mais forte do que tudo, porém, é a sensação carnal e épica de estar vivendo o que, muito provavelmente, será considerado um marco na história do século XXI, quiçá da humanidade: um novo tipo de revolução em que o principal agente transformador, invisível a olho nu, revela o quanto nossos corpos se contagiam, apesar das cordilheiras e oceanos socioeconômicos, étnicos e ideológicos que nos separam. Estamos tão próximos que precisamos nos evitar e nos esconder, embora saibamos que, a qualquer momento, poderemos ser vizinhos de leito hospitalar ou de necrotério. Este estranho e prolongadíssimo feriado sanitário talvez nos salve de um cotidiano que mais nos fazia morrer do que viver, mas a questão é que outra história somos capazes de construir.
Somos?”.

Habemus corpus, por isso, precisamos estar longe uns dos outros. Depois, quem sabe possamos nos sentar em cadeiras vizinhas na belíssima Salvador, para falarmos e escutarmos uns aos outros? Certamente, estaremos sedentos por abraços, e ávidos por dançarmos juntos outra vez. Quem sabe? Afinal, queiramos ou não, saibamos ou não, neguemos ou não: Habemus corpus!

[1] Tradução livre da frase: eu tenho corpo.

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