XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio VI
O SINTOMA E O PSICANALISTA: TOPOLOGIA, CLÍNICA E POLÍTICA
Sonia Alberti
Se o sintoma amarra RSI borromeanamente ou não – dependendo da estrutura clínica do sujeito, por exemplo –, os três registros da realidade psíquica e, por isso, ela mesma o sintoma, então, ele é uma necessidade lógica. E se para a psicanálise a lógica é a ciência do real – aquela que se dá na articulação de letras –, então o sintoma enquanto necessidade lógica pode ser decantado em letra como índice do gozo que se obtém pelo fato de toloerarmos o inconsciente que nos determina. O que concluo dos prelúdios que me preludiaram.
Na medida em que a psiquê exige do sujeito ter que se haver com o real – com a topologia, se acompanhamos o Lacan do Insabido –, cada um o fará do seu jeito. Mas para fazê-lo de seu modo singular, é preciso primeiro poder haver-se com a castração. Ora, a castração mais difícil de encarar é aquela que impõe ao Outro sua falta, o que Lacan escreve S(Ⱥ), falta um significante ao Outro. A ela responde a fantasia do sujeito $<>a, que visa atribuir ao Outro um querer para com o sujeito, aquele querer que responderia ao Che vuoi?, o que queres de mim? Freud já conceituara o sintoma neurótico como formado pela fantasia, uma resposta forjada pelo sujeito à pergunta que o Outro não pode responder porque lhe falta significante para dar essa resposta.
O neurótico responde à pergunta, mas ao respondê-la, vela a castração, justamente. Basta retomarmos uma ou outra dessas respostas fantasmáticas já tão conhecidas da literatura psicanalítica: a trabalhada por Freud em 1919, “bate-se numa criança” e aquela que se depreende da referência de Lacan à mãe crocodilo, no seminário O Avesso da psicanálise, “devora-se uma criança”. São construções fantasmáticas que claramente atribuem ao Outro uma onipotência no avesso de sua castração que elas se propõem colmatar. O resultado disso, já dizia Freud, é que o sujeito tem uma perda da realidade, é a perda da realidade na neurose que, quanto mais grave a neurose, ou seja, quanto mais ela colmata a castração do Outro na medida em que a neurose avança, na medida em que mais dados da realidade é preciso perder para não perder a crença na onipotência do Outro, quanto mais isso acontece, mais sintomas vão se formando, alimentados pela fantasia que dá consistência ao Outro.
Assim, conceituava Freud, o sintoma é um compromisso entre o que não se quer ver nem saber e o saber que não se sabe saber – o saber inconsciente.
Por que o trabalho analítico pode ser bem sucedido – mesmo se Lacan nos alerta para o perigo de levar esse “bem sucedido” ao pé da letra? Por que o trabalho analítico pode sustentar um sujeito a atravessar uma elaboração de descostura de todo seu emaranhado sintomático de tal maneira que, no final, ele possa se deparar com o que por tantos anos tentou dissimular? Por que esse contrato analítico ao qual Freud já fazia referência nas primeiras páginas de seu trabalho sobre a transferência, esse contrato com “a parte sadia do eu”, sustenta o sujeito nessa travessia que Lacan viria a chamar a da fantasia, aquela que leva o sujeito a se deparar com o que, de fato, é o resultado da castração do Outro, ele mesmo o a?
Sou $, se somente se, a, ou seja, o sujeito é consequência do efeito da castração do Outro, o que fura toda e qualquer consistência, como S fura I, I fura R e R fura S. Daí que também Lacan inscreve o a ali, na interseção desses três registros, no nó borromeano. Na neurose, era para não se deparar com o resultado da castração do Outro que o nó borromeano se sustentava na realidade psíquica e que Lacan identificou ao gozo do Outro. Sim. O Outro gozava do sujeito em “bate-se numa criança”, “devora-se uma criança”. Ele tinha uma consistência que mantinha o sujeito articulado aos três registros sem precisar se deparar com cada um daqueles furos, o do S, o do I e o do R.
Com o trabalho analítico ele vai se deparando com esses furos, ele os refaz na tiquê transferencial da repetição analítica, com os cortes sucessivos do discurso (analítico). E ao chegar ao final dessa elaboração, quando a perda do Outro gozador se impõe e a realidade psíquica fantasmática desmorona – o que tantas vezes é seguido pelo afeto melancólico característico da perda –, um último trabalho ainda resta a fazer: O da construção de um sinthoma.
Pois não somos seres de pura lógica, precisamos continuar a fazer com o real, com o simbólico e com o imaginário, precisamos continuar a nos apoiar em algo, já não mais um compromisso entre o que não se quer ver nem saber e o saber que não se sabe saber, mas um compromisso entre o resto que se é a partir da travessia da fantasia e o que se tem do legado que nos determina. A realidade psíquica que presentificava o gozo atribuído ao Outro pelo sujeito faz agora, no avesso do corte topológico que Lacan desenvolve no Insabido, o possível gozo do Outro pelo sujeito. Em vários depoimentos de AEs essa passagem se manifesta numa letra em lalangue, quando isso se capta numa análise. Eis o que reforça a possibilidade de, com o final da análise, transitarmos entre os quatro discursos, como sujeitos, objetos, referências significantes e semblantes, na aposta de um sentido [vetor] singular que atribuímos à orientação sinthomática de cada um. É a aposta nessa orientação que nos entusiasma e faz de nós trabalhadores decididos. Do quê? Do poder gozar do inconsciente, do saber de que, tolos, nos sustentamos.
O que faz com que nos mantivemos, por tanto tempo, nessa elaboração, ou seja, em análise? Apenas uma coisa bastante simples: o analista é suposto não gozar do sujeito, aliás, como o Santo – para retomar Televisão. O Santo não goza do sujeito porque já goza com o Outro; o analista, porque ele não está lá como sujeito.
Eu levantaria a hipótese de que, quanto mais uma figura do Outro busca gozar do sujeito, tanto mais a realidade psíquica deste se enrijece, tanto mais crê no Outro, tanto mais colmata a castração dele. Não é a isso justamente que assistimos, boquiabertos, quando tantos crêem em promessas sem fundamentos, em falas extemporâneas, no alardeamento de práticas segregacionistas às vezes as mais criminosas, na justificativa do descaso para com os cidadãos em nome de uma garantia econômica que, em verdade, apenas depende do conjunto dos cidadãos! Promessas, falas, alardeamentos, justificativas do modo como Lacan já identificava aquelas do tirano: quanto aos desejos, voltem depois. Então por que ainda tantos sujeitos identificam essas figuras com seus Outros?