Prelúdio 3 – Ana Laura Prates Pacheco
Desfazendo o nó cego e dando nó em pingo d’água!
No Seminário RSI, que em francês ressoa como heresia, Lacan anuncia que há esperança de darmos um passo juntos, convocando os analistas da época a acompanhá-lo na aventura borromeana. Como dizem que a esperança é a última que morre, ainda hoje tentamos acompanha-lo nesse passo que é, fundamentalmente, clínico. Lacan é enfático ao afirmar que o nó borromeano não é um esquema, aos moldes da “geometria do saco” freudiana, na qual id/ego/superego são esboçados a partir da separação entre mundo externo e mundo interno. Tampouco se trata de um modelo matemático, ou uma representação. O nó muito menos é uma transcendência, ou uma cosmologia, já que ele “parte da experiência analítica e é nisso que está o seu valor”. O nó, portanto, apresenta-nos o “espaço do parlêtre”, na medida em que só há ser da fala/palavra, a partir do acontecimento de um dizer. Graças a esse acontecimento, o corpo não se comunica com a linguagem. Não há razão (proporção/relação) possível entre a res cogito e a res extensa, razão esta, entretanto, que a fantasia fundamental do sujeito neurótico tenta escrever com as versões pulsionais do objeto a ($◊a). Constatamos que o máximo que ele consegue é fazer um nó cego (e também, muitas vezes, surdo e mudo), no qual fica preso e fixado.
É o dizer de Freud, desenvelopado por Lacan, que nos permite verificar a estrutura para além da fantasia; em outras palavras, é a Psicanálise que aponta a não coalescência entre o a e o S(Ⱥ) – o gozo opaco e à deriva, o Outro gozo, a terceira (pois gozo, em francês – jouissance, é artigo feminino). Já que a dualidade linguagem/corpo não faz um, logo, há três. O Real é três. Aqui é o dizer de Cantor que impera. O três no nó é cardinal, não há ordem nem prevalência de um sobre os outros dois. O três ex-site. Mas ele também insiste e consiste. Assim, o nó bo (apelido para borromeu) nos apresenta o impensável enlaçamento entre o equívoco fundamental e o sentido, RIS, RSI, ISR, IRS, SIR, SRI… Heresia lacaniana! Mas o nó, ele mesmo, também é a um só tempo real, simbólico e imaginário, na medida em que se mostra, se escreve e se imagina. Eis o segredo do nó, sua impossibilidade de fazer uma única consistência, pois cada duas que se enlaçam, esburacam a terceira.
Assim, as particularíssimas características desse tipo de enlace têm para Lacan, uma inestimável utilidade clínica. O sofrimento humano pôde ser formalizado e tratado – na experiência psicanalítica sob transferência – desde que Freud o nomeou: inibição, sintoma, angústia. A partir do nó podemos precisar que a inibição (por mais que a chamemos de depressão) “é o que para de se imiscuir no buraco do simbólico”; a angústia (por mais que a chamemos de pânico) “parte do real e dá sentido à natureza do gozo que se produz aí”; e, mais ainda, continua sendo pelo sintoma (por mais que o chamemos de fibromialgia, TOC, ou TDH) que “identificamos o que se produz no campo do real”.
Ora, é justamente com o sintoma – “o efeito do simbólico no real” – que a Psicanálise opera, na medida em que possibilita ao sujeito desfazer o nó cego da fantasia e, através do inconsciente, operar a redução do sintoma até sua letra impronunciável. Sabemos que é preciso tempo para que se produza essa letra que separa as três modalidades gozosas, revelando que o buraco sem fundo cavado do nó cego é, realmente, furo estrutural que cospe o nome, sustentando e orientando nosso desejo incurável. Mas vale a pena apostar em outras tranças, que promovam novos laços (inclusive sociais, amorosos e sexuais), e que permitam ao falaser se virar (lidar, rebolar, ganhar a vida, pagar o preço, etc.) e nesse reviramento topológico: ver, ouvir e falar, inventar outra ficção do real. Não mais um nó cego, surdo e mudo. Antes, por que não arriscar o impossível, dando nó em pingo d’água?