Prelúdio 6 – Andréa Franco Milagres
O laço com o Outro na erotomania: um nó
O tema que nos convoca ao trabalho é “Neurose, psicose e perversão: enlaces e desenlaces”. Tomarei comoponto de partida uma pergunta: o que pode a psicanálise extrair da clínica com sujeitos erotômanos? Podemos considerar a experiência com estes sujeitos potente em termos de ensinamento?
Freud desde o início considerou com reservas a possibilidade de a psicanálise ocupar-se dos sujeitos psicóticos. Já em 1911 constatava que o impasse advinha da dificuldade de estabelecer uma ligação libidinal com o psicanalista, visto que na psicose haveria um retorno da libido em direção ao eu, em detrimento de uma ligação com os objetos, situação que comprometeria a transferência, motor do tratamento psicanalítico. Todavia, se por esta razão Freud desconfiava da aplicabilidade da prática psicanalítica à psicose, paradoxalmente nos mostra, através do delírio de Schreber, como o sujeito trabalha para se reconectar ao Outro. Sempre.
Schreber é exemplar para a psicanálise, na medida em que nos permite constatar os efeitos do desligamento do outro, os destinos da libido quando do seu retorno ao eu e as ulteriores tentativas de religamento.
A partir do enunciado “como seria bom ser uma mulher submetendo-se à cópula” Freud escuta ao pé da letra o desejo de Schreber: eu (um homem) o amo (a ele, um homem). A fórmula-matriz “Eu o amo” sofrerá um trabalho de negações, inversões ou projeções permitindo a Freud depreender uma tipologia da paranoia: delírios de perseguição, de ciúmes, de ser amado e de grandeza, que nos instruirão a respeito de sua ligação com o Outro e, consequentemente, com seu desejo, conforme o tipo clínico.
Marisa, um “mulheril”.
De início dificuldades em estabelecer o diagnóstico diferencial. Aos poucos recolhemos algumas pistas. Primeira pista: vendo televisão uma propaganda anunciava: “de mulher pra mulher, Marisa…”. Teve então uma certeza: o recado era pra ela. Segunda pista: o surgimento de um neologismo. Relatava estar em uso de uma medicação que nomeava como “mulheril”, ao invés de melleril[1]. Terceira e inequívoca pista: no parto do terceiro filho testemunhou uma
experiência inefável. Durante a cesariana teve acesso a um gozo sexual que jamais havia experimentado. Sua conclusão é rápida e certeira: “Doutor X me ama”. A partir daí passará seus dias atrás do doutor X, cercando-o nas ruas e jogando-se na frente do seu carro para lhe declarar seu amor. Importante lembrar que a erotomania pode manifestar-se clinicamente nas duas vertentes: amar ou ser amado pelo Outro, pois se Marisa ama, foi Dr. X quem declarou seu amor primeiro. Podemos nos interrogar sobre o laço que o sujeito estabelece com o Outro: ela é Marisa, o mulheril que tendo acesso a essa experiência absolutamente única proporcionada pelo Dr. X pode não somente gozar como fazê-lo gozar. Na psicose e especialmente na erotomania podemos dizer que o amor se torna signo do gozo do Outro e ao mesmo tempo circunscreve seu ser de mulher?
O que podemos concluir é que se a erotomania constitui certo modo de tratamento ou de localização do gozo no Outro, não cabe ao psicanalista aspirar sua erradicação, por mais problemático que seja o manejo clínico. Os psicanalistas que não recuam diante da psicose aprendem que a erotomania pouco cede com a medicação e resiste à nossa intervenção. É que se trata de uma solução subjetiva, uma amarração, um nó. E que nó!
Neste enodamento o analista pode ou não estar incluído. O sujeito pode dispensar o analista e prosseguir com seu trabalho solitário, mas não necessariamente silencioso. Pode também solicitar sua presença situando-o como secretário e testemunho do seu amor louco, ou, como às vezes acontece, pode incluir o analista como aquele que o ama. É neste ponto em que se corre o risco de enrolar-se. É sobre este nó da clínica e seus embaraços que gostaria de tecer alguns fios em Curitiba.
(1)Cloridrato de tioridazina, neuroléptico indicado em casos de psicose e exacerbações agudas.