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Prelúdio 9 – Vera Pollo
Enlaces do sujeito no Outro

“Neurose, psicose e perversão: enlaces e desenlaces.” Por onde adentrar o tema que nos convoca? Escolher a estrutura? Privilegiar os enlaces? Ou abordar os desenlaces? Suspendo provisoriamente as questões. Decido caminhar pari passu com Freud e ver aonde ele me conduz.

Escansão primeira. A descoberta da identificação foi sem dúvida um momento fundamental na construção da teoria psicanalítica. A tal ponto que Freud chegou a denominar a identificação de “o elo faltoso” em sua teoria da histeria. Desde então, era possível verificar que os enlaces teóricos freudianos eram a expressão conceitual dos enlaces encontrados em sua clínica. Anteriormente, a formação de sintomas na histeria era debitada apenas à construção de uma fantasia inconsciente e à presença de um “gozo a menos”, resultado da defesa subjetiva. Nos termos freudianos, tratava-se da descoberta da importância da “identificação à pessoa amada”. Mas Freud não tardou a perceber que a identificação era de fato tão central na constituição do Ich, que ela também podia ocorrer com a pessoa odiada, sendo intermediada pelo ódio e pela culpa. Num caso, como no outro, ela se processava mediante a extração de um só traço – Einziger Zug – do objeto que se transformava em traço do Eu. Por meio de uma operação moebiana, verificava-se, assim, que as distinções do tipo: ou dentro ou fora, ou em cima e ou embaixo, ou na superfície ou nas profundezas, não passavam de ilusões imaginárias, pois o que verdadeiramente ocorria era o enlace do sujeito ainda infans ao simbólico do Outro real.

Escansão segunda: Freud é levado a concluir, simultaneamente, a inexistência de uma pulsão que pudesse ser dita “social” e o fato de que a estrutura da massa em nada difere da estrutura do Um, feita de grupos psíquicos isolados. A hostilidade é a forma mais primitiva do laço social. A fraternidade não passa de um semblante, pois está na dependência do mecanismo sublimatório da pulsão. Na clínica, a paranoia não cessa de atestar a veracidade da fórmula expressada primeiramente pelo filósofo Thomas Hobbes (1588/1679): “O homem é lobo do homem”. O relacionamento do homem com seus semelhantes é sua “fonte principal de sofrimento” (Freud, (1930[1929]), e isto assim se traduz: “O coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (Lacan, 1966/1998:213). A cultura é uma goela insaciável de renúncia ao gozo, pois os quatro discursos que a compõem jamais alcançam o objetivo de freá-lo todo. O mais-de-gozar se imiscui em todo laço social, até mesmo no laço histérico em que ocupa o lugar da verdade.

Escansão terceira. Freudianamente enlaçada a Lacan, vejo-me enlaçada também à literatura. Um e outro, Freud e Lacan, não cessaram de nos alertar: a verdade é fictícia, recorram aos poetas. Recorro então a Marguerite Duras e a Le ravissement de Lol V. Stein. Deslumbramento? Arrebatamento? Procuro resumir a história: Aos dezenove anos, no decorrer de um grande baile em uma cidadezinha de praia onde passava as férias, Lol perdeu o noivo, Michael, para uma mulher mais velha. Ao fim da noite e do baile, ele buscou mais uma vez o olhar de Lol, mas ela já não o podia ver. Deixou-se ficar atrás das plantas, em seguida desmaiou. Tatiana, sua amiga, esteve ao seu lado até o fim do baile, e foi também a única que nunca acreditou que a perda do noivo podia ser a única razão do estado de mutismo e apatia em que Lol entrou, o qual, todavia, não a impediu de casar-se, ter filhos e viver uma vida aparentemente regrada e feliz durante dez anos. Mas, eis que um dia Lol voltaria a viver na cidade onde perdera o noivo e onde iria reencontrar a amiga do passado. Desse momento em diante, alguma coisa começaria a movimentar-se em Lola Valérie Stein, pois era este o seu nome completo. Algo começou a movimentar-se, até ela descobrir que Tatiana, embora casada, tinha um amante, chamado Jacques, com o qual ela se encontrava regularmente em um hotel. Lol se aproximará dos dois e conquistará o amor de Jacques. Amor este que permitiria a Jacques entender o que Lol lhe demandava: que ele a deixasse participar da cena de amor proibido. Sim, mas como? Como um sujeito reduzido ao olho, ou melhor, como “um ser oferecido à mercê de todos”, escreve Marguerite Duras. Pois, naquele momento, se Tatiana, era um corpo nu de mulher, um corpo envolto apenas em longos cabelos negros, Jacques, o amante, era aquele que trazia Tatiana até a janela oferecendo-a a Lol, e esta nada mais era do que “uma mancha na paisagem” do vasto campo de centeio em frente ao hotel de passe. Jacques realizava a mostração do objeto e, com ele, o furo na moldura da janela do hotel de passe. “Pois o desejo é um ser a três, e o objeto que o causa só se sustenta ao ser do Outro.” (Lacan, “Homenagem a Marguerite Duras”, 1965/1989: 129).

Mais- uma escansão. Para relançar minha pesquisa, apoio-me nesse momento em Bousseyroux (2014: 278): “Desde junho de 1975, Lacan tinha a intenção de orientar a direção do seu seminário apoiando-se em Joyce, como aquele que se dá o privilégio de ter querido identificar-se com o individual, quer dizer, de ter estado no ponto extremo de incarnar nele o sintoma como o que traz a marca da sua singularidade […] Essa quarta consistência que ele chamava em R.S.I. de Nome-do-Pai, depois chamou de nominação do simbólico, Lacan a chama desde então sintoma ou sinthoma, Σ.” […] Então, se não é possível o despertar para o real do sintoma sem passar pelo inconsciente real, “tese pós-joyciana de Lacan” (:292), o despertar que promete o enlace analítico, em seu momento de desenlace, é “levantar a aurora de um desejo inédito sobre a noite do gozo sonhado, sonhado à vezes como pesadelo, mas de que o sono do sintoma é guardião” (Idem, ibid. tradução livre).

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Principais Referências Bibliográficas
Bousseyroux, M. Lacan Le Borroméen. Creuser Le Noeud. Éditions érès, 2014.
Duras, M. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V. Stein). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Freud, S. (1930[1929]) “O mal-estar na civilização”. Obras Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1969/1976, v. XXI.
Lacan, J. (1965) “Homenagem a M. Duras” in: Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Pelas bandas da psicanálise/4. Assírio & Alvim. Lisboa, 1989.
———— (1966) Nota de rodapé a “O tempo lógico e asserção de certeza antecipada” in: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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