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Prelúdio 10 – Barbara Guatimosi
Enlaces e Desenlaces:Algumas pontuações sobre o mal-estar

Freud, em seu texto “O Mal-Estar na Civilização”, nos diz que um dos principais esforços da civilização é reunir as “… pessoas em grandes unidades”[1], sendo isso um esforço erótico indubitável. Ao longo do artigo Freud vai desenvolvendo a compreensão do enlace amoroso que une as pessoas, desde onde isso vem, até onde vai, em que isso acarreta e no que implica.

“… A civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um,[2] se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo.” [3]

A esta paisagem Freud acrescenta que o sentimento de culpa, oriundo do que se cede de um lado ou de outro, está nesta configuração, inevitavelmente presente. Nesta eterna luta entre Eros e o impulso destrutivo, o conflito é posto em ação,

“… tão logo os homens se defrontem com a tarefa de viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta numa intensificação adicional do sentimento de culpa. Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta entre as tendências do amor e da morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere difíceis de tolerar”.[4]

Gostaria de destacar três trechos do Freud que citei:

1- “… a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos.”

2- “Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta numa intensificação adicional do sentimento de culpa.”

3- “O que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo”.

A partir disso poderíamos levantar algumas questões:

Não seriam os laços da cadeia mítica, Totem e Tabu – Édipo, (que têm, além de outras coisas em comum, o Supereu como herdeiro) coerentes com o amor que odeia, com a hierarquia familiar, rigidamente estabelecida pelas gerações, onde só há lugar para pai, mãe e filhos, em disputas e/ou subserviência, coerentes, portanto com o amor ao pai que segrega uns para unir outros nos laços do amor filial e fraterno e fazer Um clã?

Na paisagem mítica de Totem e Tabu, temos inevitavelmente o amódio, fruto de exclusões, conseqüência de um pai tirânico que exclui os filhos, e filhos parricidas que, por sua vez, eliminam o pai. Crimes que não libertam ninguém, mas aprisionam cada vez mais na lei da culpa instaurada pelo parricídio (condenação que também vemos acontecer no mito edipiano). O amor que se segue a isso é o amor ao pai e à restituição totêmica de sua figura poderosa, que implica em uma fraternidade duvidosa, já que cada um dos filhos compete para ser o ao menos um que pode recompor o pai, deter o falo, e também herdar seu lugar.

Essa horda primitiva ampliada como cenário da civilização, ordena para os sujeitos, tanto na família, quanto socialmente, a demissão do desejo e a busca do poder de gozar, ou de gozar do poder absoluto, único gozo permitido por ser encarnado pelo pai da horda – exemplar[5]. Completa-se a cena com a instância do supereu, acionada pela culpa. A lei instaurada pelo assassinato do pai nos mitos é a lei imaginária e paradoxal do supereu, lei que impede/imperativa o gozo. A lei forjada pela castração borromeana, que enoda ao registro do imaginário os elos do real e do simbólico, é a lei do não todo; aquela que barra o absoluto. Dessa maneira saímos do mito, não pelo assassinato, mas pela estrutura nodal, pelo corte que barra uns e outros: S ( A/).

Poderíamos pensar a união/inclusão (Eros) ou a segregação/exclusão (thanatos) como lados da mesma moeda; uma respondendo à outra, quando se excedem desarticuladas. Ou o que Lacan chamou de geometria do saco (RSI). Ou se está dentro, ou se está fora- o que é também a lógica do clã.

Apesar de reconhecermos com Lacan que o “que a análise articula é que, no fundo, é mais cômodo sujeitar-se ao interdito do que incorrer a castração,” [6] extraímos disso que o amor pode advir de outras bandas: do real da castração nodal da qual emerge o desejo e de onde provém sua causa.

Diferente desse amor “religioso” professado por Freud, retroalimentado e movido à culpa, o franqueamento a outra forma de amar movida pelo que causa o desejo, poderia forçar aquilo que só se quer familiar: abrir-se (pois abrigar talvez fosse demais) ao estranho e ao acontecimento de novos laços não obrigatórios, nem exclusivistas, e quem sabe, mais que desejáveis, desejantes, somente na condição desejante podemos talvez gozar em “fazer um amor mais digno”[7]

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Referências bibliográficas:

FREUD, Sigmund. A interpretação de sonhos -Parte I- (1900). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972. Vol. IV.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob direção geral de Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, Vol. XXI.

LACAN, Jacques. O seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Tradução Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Tradução A. Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

LACAN, Jacques. Nota italiana (1973). Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003.

LACAN, Jacques. Livro 22 – O seminário: R.S.I. (1974-1975). Inédito.

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