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Prelúdio 13 – Conrado Ramos
Uma lógica para os (des)enlaces dos Psicanalistas

Vira e mexe, voltamo-nos às questões, funções e disfunções que os laços entre psicanalistas nos colocam. Partimos em geral do princípio de que os enlaces entre psicanalistas, quando levamos em conta o real que tentamos sustentar e transmitir, não devem seguir as lógicas próprias à psicologia de massas freudiana. Remetemo-nos a história das instituições psicanalíticas e destacamos nossas experiências do mau uso do Um, das imposturas de saber, das submissões ao mestre, das filiações corporativas etc. Insistimos, baseados nos escritos e tentativas de Lacan, que o psicanalista não tem atributo unificador, autoriza-se de si mesmo, é tão só não sem outros e outras tantas formulações que gostamos de repetir em nossos textos, comentários e conversas.

Pois bem, tentando dar mais uma volta neste tema dos enlaces e desenlaces entre psicanalistas, esboço aqui um exercício de formalização que busca aplicar às Escolas a lógica coletiva que Lacan propôs no último parágrafo de seu texto sobre o tempo lógico. Faço-o não sem a sensação de que muita gente já tentou o mesmo. Neste caso, sigo sendo mais um com o mesmo intuito. Retomo o parágrafo de Lacan:

Mostraremos, no entanto, que resposta uma tal lógica deveria dar à inadequação que sentimos por uma afirmação como “Eu sou homem”, seja em que forma for da lógica clássica, trazida como conclusão das premissas que se quiser (“O homem e um animal racional” … etc.).

Certamente mais próxima de seu valor verdadeiro ela se afigura, apresentada como conclusão da forma aqui demonstrada da asserção subjetiva antecipatória, ou seja, como se segue:

1o) Um homem sabe o que não é um homem;

2o) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens;

3o) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem.

Movimento que fornece a forma lógica de toda assimilação “humana”, precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, no entanto, reserva a determinação essencial do [eu]… (p. 213)

O primeiro ponto a se notar diz respeito à retirada da afirmação da “humanidade” do terreno da lógica clássica. Assim sendo, a “humanidade” não deveria ser uma condição retirada de um atributo comum e previamente dado, como “todo homem é racional”, “todo homem é mortal” ou “(x)Φ(x), como se ao humano coubesse um atributo comum, um predicado previamente dado capaz de fundar uma coleção a partir de um ISTO, todos que estão aqui neste conjunto, têm. Lacan propõe que se coloque a assimilação do humano dentro de uma lógica temporal que inclui o laço, o ato e a suspensão do atributo unificador. Uma assimilação do humano que se efetiva não pela entrada numa coleção, mas pela negação do não-humano, negação esta que se realiza pela mediação do próprio laço. Uma assimilação, portanto, dialética, mas que suspende a síntese que permitiria a afirmação imediata do humano. Uma afirmação mediada e possível somente em ato e em cada caso, portanto, já que desta afirmação não se pode extrair um atributo comum.

Podemos formular, assim, que no laço possível à lógica coletiva proposta por Lacan, o ser humano aparece como traço distintivo e não como elemento unificador. Noutras palavras, humano é aquele em condições de se afirmar como tal apesar da condição potencial de lhe ser negada a humanidade.

Vejamos a primeira proposição que Lacan nos oferece: Um homem sabe o que não é um homem. O único saber que tem é o do que não é um homem. Um homem, portanto, seja lá o que isso for não sabe o que é um homem.

No entanto, Os homens se reconhecem entre si como sendo homens. Surpreendente entendimento não imaginário do reconhecimento, posto que funda o reconhecer no acontecimento em que consiste o próprio laço social e não num saber prévio ou no reencontro de um traço determinado/determinável. Isto quer dizer que se os homens se reconhecem entre si, isto só pode se dar em cada laço e a cada vez, já que um homem não sabe previamente o que é um homem. Não é no saber sobre o humano como elemento unificador que a humanidade se sustenta, e sim nos singulares modos de fazer-se humano contra o não-humano já sabido.

E como terceira proposição, temos que Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. O humano é ato de negar-se como não-humano, de modo a fazer da humanidade não uma coleção de seres marcados pelo atributo humano, mas sim um coletivo formado por aqueles que, um a um e no laço, puderam negar sua não-humanidade: o conjunto, então, não pode ser universal (todo homem é); mas precisa colocar-se pela via existencial: não existe humano que não tenha negado sua não-humanidade (), sem que haja um predicado unificador do tipo . Noutros termos, a lógica coletiva de Lacan segue um princípio da lógica intuicionista diante da qual a dupla negação não é um método de construção da afirmação de uma propriedade, posto que se é falso que , também é falso que , já que estamos considerando, de modo paracompleto, que (P˅¬P) pode ser falso. Noutros termos, a lógica coletiva lacaniana propõe-nos pensar, já em 1945, a humanidade pela via feminina do não-todo (pela suspensão, e não negação, da exceção e da totalidade do lado homem das fórmulas da sexuação, lembrando que, se considerarmos ambas as fórmulas verdadeiras – o todo e sua exceção – temos uma lógica paraconsistente).

Aí está: apliquemos agora a referida lógica aos psicanalistas:

1o) Um psicanalista sabe o que não é um psicanalista. O único saber que tem é o do que não é um psicanalista. Um psicanalista, portanto, seja lá o que isso for, não sabe o que é um psicanalista.

2o) Os psicanalistas se reconhecem entre si como sendo psicanalistas. Isto quer dizer que, se os psicanalistas se reconhecem entre si, isto só pode se dar em cada laço e a cada vez, já que um psicanalista não sabe previamente o que é um psicanalista. Não é no saber sobre o psicanalista como elemento unificador que a Escola se sustenta, e sim nos singulares modos de fazer-se psicanalistacontra o não-psicanalista já sabido.

3o) Eu afirmo ser psicanalista, por medo de ser convencido pelos psicanalistas de não ser psicanalista. O psicanalista é ato de negar-se como não-psicanalista, de modo a fazer da Escola não uma coleção de seres marcados pelo atributo psicanalista, mas sim um coletivo formado por aqueles que, um a um e no laço, puderam dar suas provas singulares como modo de negar-se como não-psicanalistas: o conjunto, então, não pode ser universal (todo psicanalista é); mas precisa colocar-se pela via existencial do um a um: não existe psicanalista que não tenha negado ser não-psicanalista.

Pois bem, se meu argumento não é forte o suficiente para sustentar uma lógica coletiva para uma Escola de psicanalistas, ao menos tem me ajudado a pensar as disfunções dos enlaces e os decorrentes desenlaces de uma Escola.

Senão vejamos:

1o) Um psicanalista sabe o que não é um psicanalista.

Como disfunção desta proposição, encontramos as manifestações de sua contrária no que diz respeito ao objeto do saber: “um psicanalista sabe o que é um psicanalista”, que podemos encontrar como “Sabemos o que é um psicanalista” ou como “Eu sei o que é um psicanalista”. O que era suspenso no campo do saber é aqui afirmado. Temos, no primeiro caso, as formações de massa em torno do atributo comum (aqueles que fazem coleção em submissão ao Um – “sabemos o que é um psicanalista”: ) e, no segundo caso, a impostura daquele que se propõe como exceção – “eu sei o que é um psicanalista”

Se todos sabemos o que é um psicanalista, então caímos, sob o mesmo ideal, na ilusão de que somos todos iguais. Aqui estamos no terreno do amor de transferência.

2o) Os psicanalistas se reconhecem entre si como sendo psicanalistas.

Como disfunção, aqui, encontramos as mais variadas, sutis ou brutais, desautorizações: “sei/sabemos o que é um psicanalista e, por isso, não reconheço/reconhecemos X e/ou Y como psicanalista(s)”. Vale lembrar que reconhecermo-nos como psicanalistas não é o mesmo que afirmar o que é um psicanalista. Esta disfunção nos coloca no campo do narcisismo das pequenas diferenças, que nos faz pensarmos que uns (nós) sabem (sabemos) e outros (eles) não sabem o que é um psicanalista. Aqui caímos no terreno do ódio e das transferências negativas.

3o) Eu afirmo ser psicanalista, por medo de ser convencido pelos psicanalistas de não ser psicanalista.

Diante desta proposição encontramos como principal disfunção os problemas de autorização: não-autorizar-se (já que não sei o que é um psicanalista) e delegar ao Outro (que sabe o que é um psicanalista) o poder de me autorizar. Se me corro afirmar como psicanalista, não é porque isto deva depender do Outro, mas porque o laço entre psicanalistas implica que eu dê minhas provas a cada vez e no próprio laço, uma vez que o negar-me como não-psicanalista é justamente o que coloca em movimento a transmissão. O autorizar-se de/por si mesmo, portanto, não é sem laço social. Se a transmissão fica reduzida à posse do saber sobre o predicado que faz e garante um psicanalista, então o medo de ser convencido pelos psicanalistas de não ser psicanalista é um medo que me põe diante de um ideal e não dos impasses do ato, é a inibição como contrapartida da impostura.

Outro modo de entender a disfunção desta terceira proposição é a conquista de atributos pela pertinência grupal: procuro aqueles que sabem o que é um psicanalista e me afirmo igual a eles, com medo de deixar de ser psicanalista caso me excluam ou me digam que sou diferente. Ser psicanalista, aqui, torna-se um exercício mimético diante da atribuição de saber. Mero comportamento de manada que, às vezes, parece ser sustentado por alguns que acreditam mesmo saber o que é um psicanalista.

Por fim, se cabe ou não esta formalização para o laço entre psicanalistas, não nos esqueçamos de que uma Escola é feita de enlaces e desenlaces, funções e disfunções, em torno do furo de saber sobre o que é um psicanalista. Por decorrência, O psicanalista é sempre o insuportável de uma Escola. Assim, cabe-nos, ainda, e sempre, a seguinte escolha: ou suspendemos o saber sobre o que é um psicanalista, ou suspendemos o fazer Escola.

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