Prelúdio 02 – Antônio Quinet
Política do sinthoma – uma questão crucial
Neste momento de grande turbulência política no Brasil, pergunta-se frequentemente: qual a relação do psicanalista com a política? Devem os psicanalistas permanecerem “neutros” no espaço público para que seus pacientes – os que pensam diferente – não tenham suas análises abaladas? Não seria este pensamento um tanto contaminado pelo estereótipo do “analista” e por outros discursos alheios à psicanálise? Mas atenção, Lacan nos deixou a pergunta: “E quando a psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização que serão retomadas por quem?” (Lacan, “A psicanálise. Razão de um fracasso”). Não esperemos chegar a esse ponto, temos as nossas armas – as que nos fornecem a teoria e a clínica psicanalíticas.
“A intensão no político só pode ser feita ao se reconhecer que é só do gozo que há discurso” (Lacan, Seminário XVII). A política é uma forma de tratamento do gozo: modalidade de dominar e regular o gozo. Esse tratamento, no discurso capitalista – que é o falso laço social que determina os impasses atuais da nossa civilização – é “a espoliação do gozo”. Marx a designa como a mais-valia, “um memorial do objeto a, mais-gozar”. Assim a mercadoria é fabricada como objetos a forjados. Daí que a política do discurso capitalista é transformar o mais de gozar de cada um em mais-valia para o gozo do capitalista.
Para a política do psicanalista, o discurso capitalista como laço social não se opõe ao socialismo e sim a todos os outros discursos que são os verdadeiros laços. Mas o capital contamina todos os discursos com seu luxo prometido e seu lixo embutido. O discurso do mestre corrompendo os governos e os políticos que vendem a representatividade (de quem neles votou) às empresas (desde o financiamento de campanha até o fim do mandato). O discurso universitário privatizando a educação, preparando os alunos para o mercado espoliando seu gozo, colocando o conceito de produtividade à frente da excelência. E ainda contamina o discurso histérico fazendo do sujeito um consumidor contumaz em seu desejo insatisfeito por uma melhor aparência e status para melhor se fazer desejar. E pode também contaminar o discurso do analista que não esteja prevenido e advertido de não se deixar guiar por tudo o que não seja o próprio do desejo do analista: o de levar cada sujeito à sua pura diferença.
O que a psicanálise nos ensina é que tem algo do gozo que não é coletivizável, na medida em que é aquilo que cada sujeito tem de mais singular. É o que não faz plural, mas não deixa de fazer parceria. E isto é uma questão a ser levada em conta na política. A singularidade é o modo como cada um goza de seu inconsciente, ou seja, seu sinthoma. A política da psicanálise é a política dosinthoma. E ao levá-la para o mundo e poder se defrontar com a “civilização”, o analista estará se situando politicamente contra os discursos que fazem obstáculo ao sinthoma de cada um, que hierarquizam formas de parcerias sexuais, que discriminam determinadas maneiras de gozar, que excluem fala-a-seres por suas opções, cor, credos, classe social e suas aspirações e sinthomas. O psicanalista não pode ser preconceituoso e deixar-se contaminar pela moral, religião ou o discurso da ciência que foraclui o sujeito. A psicanálise é antirracista, pois admite que o estrangeiro habita o âmago de cada um e o diferente (heteros) é parte de si. Cabe ao analista fazer entrar a consideração pelo gozo do sinthoma, com sua singularidade, no discurso de sua polis. E no espaço público e no privado, trazer a política que sua prática ensina.