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Prelúdio 07 – Kátia Botelho
“A Prátoca psicanalítica no Zeitgeist da virtualidade”

“Ó polegada de natureza!”
George Wilkins

A atualidade, sabemos todos, é o virtual.

Vivemos nosso dia a dia, assim como nossa noite adentro, imersos no mundo virtual. Hoje, não se espera chegar em casa ou ao escritório para se ter acesso aos correios eletrônicos. O mundo virtual se adiantou a nós: estamos todos siderados; os I-phones e Androids estão acoplados aos nossos corpos, se tornaram parte integrante de nossa existência “real”, isso é inelutável! É fato irreversível!

Os gadgets comunicacionais nos alcançam onde quer que estejamos, com seus avisos perturbadores – suas campainhas de alerta – a informação chega e nos constrange, quer que nos ocupemos com ela… impossível resistir!

E-mails de trabalho, grupos de WattsApp os mais diversos, redes sociais, facebook, twitter, instagram, facetime, inúmeros aplicativos que se fizeram imprescindíveis para a vida no século XXI!

Muitos já nem se ocupam de olhar para os lados ao atravessar uma rua, estão ligados na tela dos celulares. E as novas leis de proteção aos pedestres vieram oferecer um chão seguro para essas incursões “urgentes”, inadiáveis. Não sem mencionar os fones acoplados aos ouvidos e microfones colados à boca falante.

Como não lembrar o dizer de Freud em 1929, em seu sempre atual “O mal estar na civilização”? Comentando as coisas que o homem fez surgir na Terra – lugar onde ele aparece “como um débil organismo animal”, desamparado e, a seguir, alcançando as vantagens que a realização de todos foi se constituindo como “aquisição cultural sua” – Freud nos adverte de que esse mesmo homem formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses, os quais constituíam ideais culturais. (Freud, 1929-30, p.111) Com os avanços científicos e seus derivados tecnológicos, o homem se tornou uma espécie de “Deus de prótese”, cada vez mais fascinado pelo exercício da fantasia de onipotência infantil! E Freud acrescenta: “Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades… As épocas futuras trarão com elas novos e inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus”. (Idem, p.112)

Curioso como essa escrita me remeteu a um livro antigo, de 1964: ” Os meios de comunicação como extensões do homem”, de Marshall Mcluhan. Interessante sua leitura do mito de Narciso, que vem da palavra grega narcosis, entorpecimento: “ O jovem Narciso tomou seu próprio reflexo na água por outra pessoa. A extensão de si mesmo, pelo espelho, embotou suas percepções até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem prolongada ou refletida”. Mcluhan (1964, p.59) explica que os homens logo se tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios. E que “… os meios, como extensão de nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam”. (Idem, p.72)

Foi a partir daí que passou a circular entre os intelectuais o aforismo: O meio é a mensagem; na medida em que é ele que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas, enquanto que o conteúdo ou uso desses meios são tão diversos quanto ineficazes na estruturação dessas mesmas formas. (Idem, p.23) Além disso, Mcluhan nos explica que os meios, ou extensões do homem, são agentes “produtores de acontecimentos”, mas não agentes “produtores de consciência”.

Mas, o que isso tem a ver com a psicanálise, o psicanalista e os problemas cruciais na atualidade?

No V Encontro da Escola que ocorrerá em julho/2016 lemos essa apresentação do tema a ser trabalhado pelos analistas: “O DESEJO DE PSICANÁLISE, OU “A EXPANSÃO DO ATO ANALÍTICO”. Esse tema, “o desejo de psicanálise” visa a presença da psicanálise no discurso atual, o que chamamos habitualmente “a extensão”. Mas é necessário precisar, conforme a definição dada por Lacan, que não se trata da difusão do discurso sobre a psicanálise, nem mesmo da multiplicação dos psicanalistas autodeclarados, mas “da expansão do ato”. É a condição para que haja falantes que se analisam. Dito de outro modo, trata-se da psicanálise “em intensão”, inseparável de seu “horizonte” de extensão, pois é em ato que ela deve fazer a diferença em relação às psicoterapias polimorfas.

Destaco a frase: É a condição para que haja falantes que se analisam.

A expansão do ato é a condição. Ou seja, mais além dos efeitos terapêuticos de uma análise, mais além de uma transmissão aos moldes das sociedades psicanalíticas promotoras da lógica do Um, o que está em causa na Escola de Lacan é a produção de uma verdadeira novidade: analistas transformados pela experiência de uma análise.

Lacan se colocava essa questão crucial, a de comprovar em quê o saber psicanalítico acrescentaria ou não, como efeito de sua prática, algo novo à cultura.

Na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” Lacan apontava o fato de que “…nenhum ensino fala do que é psicanálise”, isto é, fora da sua Escola; nos outros lugares, cuidava-se apenas de que ela fosse conforme, uma “cooptação de doutos”. (Lacan, 1967, p.250) No intuito de remediar tal cooptação, promotora de um retorno ao “status de imponência”, que conjuga “pregnância narcísica” com “astúcia competitiva”, trata-se de eliminar tal negligência reconhecendo a falha que recai sobre a prática da psicanálise. O que aponta para a articulação inseparável entre “… psicanálise em extensão…função de nossa Escola no mundo, e psicanálise em intensão…que prepara operadores para ela”. E nos leva ao ponto crucial do problema: “…constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la ao ponto em que nela figure a finitude, para permitir o a posteriori efeito de tempo, que, como sabemos, lhe é radical”. (idem, p.251)

O que distingue a psicanálise das psicoterapias polimorfas será esse analista – objeto produto de uma análise – que pode dizer como foi a experiência que resultou dessa operação sobre o amor e o desejo, a partir de um saber que produz algo novo, radicalmente distinta da terapêutica, que se dirige “… ao restabelecimento de um estado primário”. (idem, p.251)

Encontra-se na revista CULT de maio de 2015 um dossiê intitulado “ Psicanálise: Marginal?”, cuja leitura recomendo vivamente. Os 12 verbetes arrolados nesse dossiê podem ser “…tomados como um instantâneo do que pensam alguns psicanalistas que atualmente exercem a psicanálise nos mais variados contextos em São Paulo, independentemente de serem iniciantes na prática ou já terem um consolidado percurso”. ( CULT, ano 18, maio 2015)

Dentre eles sublinho o verbete Internet, que começa assinalando o quanto a mesma desafia a psicanálise expondo a inconsistência de sua unidade da clínica à política, passando pelas teorias, a partir da incessante circulação de saberes que ela veicula, fazendo vacilar o suporte de qualquer discurso que afirme “isto é psicanálise”. O fato de que todas as escolas e sociedades ditas psicanalíticas estejam listadas no Google faz esse significante “explodir em possibilidades de sentido, dado que a Internet propicia uma profusão de outros significantes a partir dos quais esse possa se significar”. (idem, p.45) Tal fato pode nos levar a pensar que o Google “sabe” o que é psicanálise, ou pelo menos denunciar as equivalências entre as verdades proclamadas pelas várias instituições. Entretanto, no parágrafo seguinte, o autor retoma esse aspecto de inconsistência da psicanálise apontada pela tecnologia, na vertente de sua materialidade, ou seja, na sua dimensão de “meio” que se infiltra a passos largos na prática psicanalítica. Alude timidamente ao WhatsApp como meio para remarcação de uma sessão e ao Skype como meio para reposição de uma sessão. Mas ouve-se aqui e ali que alguns analistas, seja lá de onde forem, se lançam mais além dessa inocente incursão via gadgets, em suas práticas clínicas. O que leva o autor do verbete a colocar certas questões que pareciam estar resolvidas: “o estatuto do corpo em uma análise; a emergência de um analista onipresente; a clínica atravessada pelas ferramentas de seu tempo; o lugar da imagem e do olhar em uma análise; e outras variáveis do setting analítico”.

Faço aqui uma provocação/convocação: que os analistas da Escola de Lacan apresentem relatos e articulações concernentes às suas experiências nesse novo tempo de sideração virtual. O verbete em questão termina dizendo que a psicanálise na Internet é objeto, e está à mercê da virulência que infesta a rede. Quanto a esse ponto, sabemos, não é nem privilégio nem fardo apenas para a psicanálise!

O que importa sobretudo para nós, analistas da Escola – particularmente da EPFCL – é pensar, conversar e escrever sobre o que a Internet, assim como todos os gadgets, tem sido e poderão vir a ser na prática da psicanálise – essa que se distingue das psicoterapias – por levar ao incurável e irreversível produto de um saber novo: um analista!

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1929-30) O mal estar na civilização. in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXI, p. 111-112.

LACAN, J. (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248-264.

McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix Ltda.

LEITE, N. & Goldenberg, R. Dossiê Psicanálise: Marginal? in Cult – Revista Brasileira de Cultura. São Paulo: Editora Bregantini, Maio 2015, Ano 18, p.32-48

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