Prelúdio 22 – Maria Anita Carneiro Ribeiro
“Prelúdio”
O Seminário, livro XII, Problemas cruciais para a psicanálise (1964-65), ocupa um lugar estratégico no ensino de Lacan e evocá-lo em um Encontro Nacional, neste momento de nossa história, é mais do que oportuno, é também estratégico.
No primeiro semestre de 1964, Lacan, atendendo à demanda de seus alunos, retoma seu seminário após a “excomunhão” da IPA. Ele o faz empreendendo seu segundo “retorno a Freud”: inconsciente, pulsão, transferência e repetição… Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Seminário, livro XI) renovam os votos do “Discurso de Roma”, mas exigem um passo a mais. Depois de dez seminários construindo cuidadosamente os conceitos de sujeito e objeto da psicanálise, sob a égide do aforismo “o inconsciente estruturado como uma linguagem”, é o momento de começar a interrogar a própria relação da psicanálise com a ciência.
Em 1953, Lacan apostava na possibilidade de inscrever a psicanálise junto à antropologia e à linguística estruturais no campo das ciências conjecturais. Em 1964, retomando o nascimento da ciência moderna com Descartes, ressalta a especificidade da lógica da psicanálise. Nas operações lógicas de causação do sujeito – alienação e separação – as operações aristotélicas de reunião e interseção são atravessadas pela lógica da castração:
Nem a bolsa, nem a vida: a escolha inevitável da vida traz em si inscrita a morte como destino. Nem o ser, nem o sentido: a escolha inevitável pelo sentido tem como destino último o não–sentido. Nem do sujeito, nem do Outro: o objeto, para sempre perdido, cai entre os dois conjuntos faltosos e não pertence a nenhum deles.
A descoberta freudiana do inconsciente se inscreve no Aulfklarung do cogito de Descartes à condição de subverte-lo. O Seminário, livro XII, de1964 a 1965, prossegue neste caminho, interrogando os limites do sentido, da significação, do não–sentido (nonsense) e da ausência de sentido (absense). Com base no princípio freudiano da não contradição, que rege o inconsciente, Lacan retoma a lógica do paradoxo para mostrar que, diferentemente do silogismo aristotélico em que:
Se A=B
e B=C
Donde A=C,
no inconsciente,
A é diferente de A
e se eu digo: “ Eu minto”,
eu é diferente de eu.
Finalmente, na primeira lição do Seminário, livro XIII, O objeto da psicanálise, que constitui o texto que encerra seus Escritos “ A ciência e a verdade”, Lacan traça com clareza o lugar da psicanálise com relação não só à ciência, mas também à magia e à religião. Um lugar de interseção, mas não de sobreposição ou de subserviência.
No momento em que vivemos, no Brasil e no mundo, a disseminação de uma faceta do discurso da ciência que ignora o sujeito do inconsciente (que é o próprio cientista), é acompanhada pela explosão do fundamentalismo religioso. Esta combinação malsã espraia certezas paranoicas, exclusão e segregação. Enfim, um discurso de ódio que se reduz à pura manifestação da pulsão de morte.
Em 1972, nas Conferências Italianas que proferiu em Milão, Lacan chama a atenção para a foraclusão do laço social no discurso capitalista. A foraclusão do laço social significa o esvaziamento da libido das relações entre os homens, restando a pulsão de morte, em nome de certezas delirantes quer científicas, religiosas ou políticas.
Ao lado do discurso da histérica, somente o discurso analítico recupera o lugar do amor no laço social. Porém, ali onde a histérica ama e conclama o mestre para que ele produza um saber, o discurso do analista produz transferência: amor ao saber.
Assim, toda reunião de analistas, como nosso Encontro Nacional, que faça ecoar este discurso produzindo ondas que se propagam é, como disse, mais do que oportuno, estratégico.