Prelúdio 23 – Vera Iaconelli
“Banho de água fria”
Comparo o trabalho como analista a um mergulho em água fria em dia de muito calor.
Haja coragem para enfrentar o atordoamento dessa outra di(t)mensão e, ainda assim, tão revigorante!
Quase todo dia, quase o dia todo, sair da pasmaceira morna e cômoda em direção ao campo de maior densidade, de correntes insuspeitas, onde vigoram outras regras. Nadar, boiar, quase se afogar…
Lacan chamará de aberração esta escolha de ser analista, escolha de se deixar enredar de novo. Mas desta vez pelo enredo do outro, para que este outro, quiçá, se desenrede e decida o que fazer com sua rede, até então camisa de força.
Que estranha convicção se renova nesta escolha de se oferecer ao laço transferencial, não pelo lado da avidez da demanda, mas pelo lado do semblante. Assumindo este lugar, dedico-me a escutar diuturnamente o que os ditos trazem, ainda que o tragam para fazer esquecer que algo diz. Me pergunto o que sou capaz de escutar? Por que desta vez um pouco mais, de outra um pouco menos?
Um paciente em grande sofrimento diz: não desisto da psicanálise porque não sei desistir, ao que escuto, não sabe de existir?
Tampouco sei de existir, mas sei de escutar a insistência do que ex-siste, sendo o fim de minha análise marcado pela desistência diante do impossível, escapando do logro da impotência/onipotência, de tentar saber da ex-sistência pelo beco sem saída da verdade.
No momento de concluir minha análise, fui a uma exposição dos desenhos de Francis Bacon. Desenhos que Bacon fez no fim da vida para seu jovem amante, escondido da pressão da fama e das exigências da galeria com quem tinha contrato de exclusividade, e contrariando suas próprias declarações de que não desenhava. Figuras terrivelmente belas, que para meus olhos leigos soaram deslumbrantes. Desenhos que contradizem as expectativas sociais, econômicas e as próprias expectativas do artista e que remetiam ao início de sua carreira. A análise contraria a expectativa do analisante, embora revele o que lhe diz mais respeito desde a origem.
A experiência com estes desenhos me atraiu em direção ao terrível, ao estranhamente familiar, e me remeteu a uma das maravilhas que sujeitos são capazes de produzir a partir do real.
A análise é uma outra possibilidade de apontar para sua direção.
Que escolha aberrante é esta, se não a dos que sentem ternura pelo espanto, como nos diz Lispector no conto Amor (1977).
Esta fresta do inumano, tão assustadora, quanto atraente. Tão gelada, tão refrescante!
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FRANCIS BACON Exposição Italian Drawings.
Paço das Artes Cidade Universitária São Paulo, de 16 de julho à 07 de setembro de 2014.
LISPECTOR, C. Laços de família, São Paulo: Editora José Olympio, 1977.