Prelúdio 25 – Colette Soler
“Problema crucial na psicanálise”
Os psicanalistas sempre tiveram a ideia de que a psicanálise era melhor antes. O tema apareceu sob a pluma do próprio Freud, em torno de 1920, e Lacan o abordou, ele que tanto denunciou que os analistas de seu tempo estavam desbussolados. Daí que o hoje de «a psicanálise hoje» já dura muito. É tão sem data que já foi o título da obra que Lacan tomava como exemplo de sua degradação em «A Direção do tratamento». Para os cientistas, é a ideia contrária que domina, eles pensam estar sempre no avanço, o que me leva a concluir que o declinismo dos psicanalistas tem certamente uma razão que não diz respeito apenas à insuficiência das pessoas.
Essencialmente, ele se deve à fala que faz o falasser – de ainda e sempre sem dúvida – no entanto está sujeita ao tempo e a suas evoluções. Temos por adquirido, com Lacan, que as regulações dos laços sociais que são os discursos estão inscritas no real, estruturando a realidade – histórica, familiar, social, econômica, política – que precede todos os sujeitos tomados nela. «Discurso sem fala», dizia Lacan, para marcar a anterioridade dessa ordem discursiva. Por outro lado, para ser assujeitado, a-sujeito de um discurso, é preciso dele se apalavrear[1]. Ação que supõe, em retorno, a margem de «liberdade» sem a qual o Humano não é pensável e se converte em máquina, cerebral, hormonal, genética etc., é ela que torna possível as evoluções históricas, com «o que caminha nas profundezas do gosto» (Lacan, 1963/1966) tanto quanto com os sobressaltos manifestos das ditas revoluções. É possível questionar o caminho percorrido desde a tradição pré-científica do discurso do mestre até o capitalismo financeiro dos dias de hoje? O mesmo ocorre com a psicanálise: seu discurso está à mercê dos sujeitos que dela se apalavreiam.
Mas os psicanalistas, ao se inquietarem, com razão, e ao temerem que os sujeitos, seduzidos com tantas promessas espocando na atualidade, podem não mais querer se apalavrear à psicanálise. Que isso sempre ainda seja possível é assegurado se a transferência, efeito não do discurso mas da linguagem, «se motiva suficientemente do traço unário»[2], como o diz Lacan. Mas é preciso mais do que o possível. Ora, quanto a esses sujeitos, os analistas nada podem enquanto eles não entrarem no dispositivo do tratamento inventado por Freud, isso é certo, donde: de quem poderia depender o futuro da análise se não dos próprios analistas e da maneira como a fazem operar?
Evoca-se frequentemente a frase de Lacan a propósito do analista que deve conjugar-se à subjetividade de sua época. Ora, quem não vê que na relação com as pulsões e, ainda mais, com o sexo, alguma coisa mudou desde Freud? Ele pensava o laço entre o ICS e o sexo em termos de recalque, imputável ao que denominava defesa, em nossos termos, a verdade articulada do sujeito. Lacan, por sua vez, chegou junto em relação aos costumes que se espalham atualmente em todo lugar, quando, no final, ele marcava, ao contrário, a divisão entre o romance familiar e o real das fixões contingentes do gozo, diante das quais a verdade nada pode. Ajustar a prática a essa nova perspectiva, é esse, a meus olhos, o problema crucial dos psicanalistas hoje.
Referências:
LACAN, J. (1958). A Direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar.
LACAN, J. (1969-70). O Séminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, J.Zahar, 1992.
LACAN, J. (1963/1966). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar.
LACAN, J. Compte Rendu sur L’acte analytique. In: Ornicar? , no. 29. Disponível em http://www.lutecium.org/wp-content/uploads/2010/12/J-Lacan-Comptes-rendus-denseignement-1969-Ornicar-29.pdf. Acesso em 26/10/2016.
SOLER, C. (2010). Estatuto do significante mestre no campo lacaniano. Conferência proferida por COLETTE SOLER* no Séminaire du Champ Lacanien A peste, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 255-270, jan./jun. 2010. Disponível em revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/download/12086/8759. Acesso em 26/10/2016.
SOLER, C. Sujets apparolés au capitalisme. Seminário do Campo Lacaniano em Paris, 2014.
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[1] «É isso que ele [Lacan] diz desde o início de O Avesso da Psicanálise, [1969-70] precisando que o discurso é uma ordem que me precede, um aparelho (p. 13) sem palavras, portanto, com que o sujeito não faz mais que se apalavrear (apparoler)» (Soler, 2010). Ver também Soler, 2014.
[2] Lacan, J. Relatório sobre «O Ato psicanalítico».