Prelúdio 01 – Sandra Berta, AME da EPFCL, Membro da EPFCL-Brasil, FCL-São Paulo
Política da Escola – Política do ato psicanalítico
Os Fóruns não deixam de ser orientados à Escola, de onde tomam seu sentido, pois é a escola que se dedica a cultivar o discurso analítico. A experiencia prova que esse discurso, sempre ameaçado pelo recalque, pela tendência a se perder e a se fundir no discurso comum, está à mercê das contingências do ato analítico (Carta da IF-EPFCL)
Estar orientados pelas contingências do ato analítico levanta uma pergunta que nos remete ao funcionamento e ao alcance coletivo de nossa proposta na IF-EPFCL. Certamente um desafio que enoda a política da Escola, a política do Ato psicanalítico e o real em jogo na psicanálise.
Esse enodamento deve ser considerado a partir de um quarto elo, qual seja: aquilo que, em cada caso, opera do psicanalista na direção do tratamento e nos laços de transferência de trabalho. Portanto, o mesmo repercute na atualidade da psicanálise, nas suas intervenções e nas incidências no social, responsabilizando cada psicanalista pelo seu fazer e suas respostas. A Escola à prova e a prova pela Escola, questão que estamos trabalhando no atual Colegiado Internacional da Garantia (2016-2018), porém, que nada mais faz do que retomar um debate permanente na IF-EPFCL. A Escola à prova e a prova pela Escola para abordar os problemas cruciais da psicanálise e, em particular, a política da Escola. Cada um em questão no laço com os outros. O laço original que se promove na Escola – oriundo do desejo do psicanalista e da sua função – é a ser considerado na perspectiva dos quatro discursos com os quais Lacan articulou o campo do gozo. Nesse Campo Lacaniano, atualizar os debates sobre os diferentes gozos produzidos por cada discurso é uma responsabilidade permanente para os membros do Fóruns e da Escola. Seus dispositivos – cartel e passe – estão aí para ser sustentados e para provocar a pergunta pelo psicanalista e pela psicanálise, voltando agora sobre o trípode estratégia, tática e política da psicanálise, quando Lacan colocara novamente “o analista na berlinda”[1]
A psicanálise é um ato porvir. Estratégia, tática e política da psicanálise se sustentam desse ato, embora Lacan tenha proposto em primeiro lugar esse trípode (1958) e uma década depois (1968) se debruçara sobre o ato psicanalítico. A política da falta-a-ser deu lugar às elaborações sobre o ato psicanalítico, ela se contrabandeia nas definições deste último e na fundação da Escola de Lacan.
Em 1964, para sua Escola, Lacan articulou um trípode de seções. 1) Seção análise pura que tem três subseções 2) A seção da Psicanálise aplicada 3) Recenseamento do Campo Freudiano. Cada uma delas com as suas respectivas 3 subseções. Não podemos deixar de advertir esse 3 nodal que nos permite inferir o quarto elo: o dizer de Lacan. Portanto: ato e nomeação (o dizer de Lacan) que se propagam até hoje. Expansão do ato que devemos interrogar, quer dizer, que exige a crítica assídua de nossa clínica e de nosso trabalho de Escola.
Esse programa de trabalho proposto no Ato de Fundação, se suportava de uma estrutura minimalista. Eu o cito: “para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo” Podem continuar a leitura dessa citação do texto Ato de fundação, pagina 235 dos Outros Escritos, em português. Aí encontramos a estrutura do Cartel. Estrutura esta proposta no mesmo texto para a Candidatura à Escola.
Entretanto, as perguntas que os colegas lhe fizeram chegar, após seu Ato/Ata, levaram Lacan a escrever uma Nota Anexa. Na mesma, depois de diferenciar: didata, candidatura à Escola e qualificação da análise didática, ele precisa que, para tal candidatura, será necessário apresentar-se à elaboração desse pequeno grupo, Cardo, gonzo. A seguir, e sobre a psicanálise didática, ele escreve: “O único princípio certeiro a formular, ainda mais por ter sido desconhecido [pelas sociedades psicanalíticas, entenda-se] é que a psicanálise se constitui como didática pelo querer de um sujeito, e que ele deve ser advertido de que a análise contestará esse querer, na medida mesma da aproximação do desejo que ele encerra”[2]
Três anos depois deste ato, A Proposição de 9 de outubro para o psicanalista de Escola – acolhida pelos seus colegas, não sem amplas críticas – Lacan evocava a frase que citei anteriormente e que escrevo como uma questão: o que é uma psicanálise didática? Resposta: aquela que contesta o querer de um sujeito para apontar o desejo em questão.
Acompanhando retroativamente nosso percurso, chegamos ao que Colette Soler escrevera em 1999 “Preliminar a todo funcionamento possível da Escola: “Aquilo que no início dos anos 90 chamei de “a opção” refere-se ao ato de instauração do qual procede tudo que se elabora a partir de um discurso. A opção tem precedência lógica sobre a orientação”[3].
A pertinência e a atualidade deste debate sobre a política da Escola de psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano me inspiram no exercício de revisitar a Proposição com a intenção de acompanhar a formalização que Lacan nos propôs.
O laço entre a intensão e a extensão… ainda
Na Proposição do 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola, Lacan abordara detalhadamente o laço entre a intensão e a extensão, articulando ética, política, lógica e topologia. A Proposição – que num primeiro momento não fora tão bem recebida pelos seus colegas – apresentara de saída a questão da formação dos analistas e da transmissão em psicanálise. Na primeira versão ele escreve: “Trata-se de fundamentar, num estudo duradouro o bastante para ser submetido à experiência, as garantias mediante as quais nossa Escola poderá autorizar um psicanalista por sua formação – e, em decorrência disso, responder por ela”[4]. Na segunda versão, escreve: “Vamos tratar das estruturas asseguradas da psicanálise e de garantir sua efetivação no psicanalista”[5].
Lacan fazia essa proposta evocando o que escrevera em 1956. Em Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, texto crítico e mordaz, a psicanálise era definida como ciência conjetural, no sentido do cálculo e a intersubjetividade era definida não como a relação a dois, mas contando com a presença estrutural de um terceiro – instancia simbólica –. Lacan evocara Virgílio: número Deus impare gaudet “o número 2 se regozija de ser impar”, lembrando-nos Esperando Godot, de Beckett, peça do teatro absurdo na qual tudo gira em torno ao vazio, de tempo, de espaço, da vida, do sentido…
Na Proposição, então, duas questões foram retomadas a partir do que Lacan propusera no Ato de fundação: por um lado a intensão que refere à psicanálise pura, ou seja, a formação do analista e por outro a extensão, mais precisamente: a extensão da intensão, quer dizer: a extensão da pergunta pelo ato analítico. Razão pela qual, Lacan, usando da lógica – naquela oportunidade, com a sua leitura da Conceitografia de Frege – estava interessado no que ele propusera ironicamente – pela ressonância que isso traria e pela lógica –: o não-analista.
Propor o cartel e o passe como Política da Escola significou pôr o ato analítico ao controle do “não-analista”. O ato analítico, essa passagem paradoxal do psicanalisante ao psicanalista é o lócus-temporal para recolher as consequências e os efeitos do desejo do analista e, em particular, no final da análise. A produção do desejo do analista somente advêm da experiencia do inconsciente, a única que justifica a análise didática e da qual, em termos de Lacan, podemos destacar uma diferencia radical: acreditar no sujeito-suposto-saber não é o mesmo que escrever o que se cifra de eventos de gozo, pelo que produz o inconsciente “saber sem sujeito”.
A pergunta pelo que opera na psicanálise e as considerações sobre o final de análise, quando pensamos o laço entre intensão e extensão, e quando tentamos retirar consequências para a política da Escola, podem ser recolhidas numa frase da Proposição, amplamente debatida em nossa comunidade. Retomemos ela:
Antes de lhes propor uma forma, quero indicar que, de conformidade com a topologia do plano projetivo, é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão.
Este horizonte, eu gostaria de centrá-lo em três pontos de fuga em perspectiva, notáveis por pertencerem, cada um deles, a um dos registros cuja colusão na heterotopia constitui nossa experiência.[6]
A questão, para mim, tem se colocado em pensar esse recurso ao plano projetivo. Lacan nos falara dele extensamente no Seminário 13, O objeto da psicanálise, quando formalizara o mesmo. No meu entendimento, esse seminário é um ponto de detenção, um instante de impasse que lhe permitirá imediatamente depois e pela lógica, propor dito objeto como sendo a incomensurabilidade do 1. Aqui se evoca o que colocara anteriormente: o número dois se regozija de ser ímpar. Suas elaborações sobre o objeto a estão perpassam as diferentes articulações da Proposição e do seminário contemporâneo desse escrito: O ato psicanalítico. Vale lembrar que no final de 1968, no seminário De um Outro ao outro, será a primeira vez que Lacan afirme que o objeto a é a sua invenção, algo que ele reafirmara no Seminário 21 Les non dupes….
Se plano projetivo é a estrutura proposta para a Escola, sua política e sua ética, podemos considerar que há homeoformismo – no sentido matemático – entre esta e o produto de uma análise: o ato analítico. Numa psicanálise, o discurso analítico promove que a linguagem se aproxime do real “a medida que o discurso reduz o dito a cavar um furo em seu cálculo”[7].
Destarte, no que diz respeito à intensão, a questão refere à maneira em que o psicanalista deve tratar a “investidura que ele recebe do sujeito-suposto-saber”. Entre os anos 1966-1968 a pergunta pelo laço do analista e a Escola tem como pano de fundo sua proposta sobre a transferência que, não sendo uma relação intersubjetiva, refere ao par analisante-analista e no qual o ternário se imiscui pela via do ato analítico, que está paradoxalmente na entrada e no final de análise. Se não ex-sistisse a novação[8] da linguagem, estaríamos fadados ao destino. Hoje aponto o que escreve Lacan quando propõe o matema da transferência: “é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber, esta uma formação não de artifício, mas de inspiração como destacada do psicanalisante”[9]. Se a transferência se sustenta na pergunta pelo sujeito suposto saber, o analista responderá sustentando o agalma de um objeto que será o que está na função do referente (saber textual e saber referencial, lembra Lacan aí). Na entrada, esse referente se suporta do valor agalmático da transferência, já no final o valor do referente se escreve: objeto a – causa do desejo, mais-de-gozar e agente no discurso analítico – que permite nomear: AE, analista da Escola, eventualmente…
Avaliar a extensão da intensão significa perguntar-se até que ponto estamos advertidos sobre esses três pontos de fuga: os usos dos mitos do Edipo (simbólico), a identificação e seus efeitos nas Sociedades psicanalíticas (imaginário) e a segregação (dita real). Estamos atualizando esse debate, advertidos sobre o seguinte: se a IF-EPFCL, na sua fundação, foi resposta e contestação à política do Um isso não significa que não contemos com efeitos do que prefiro chamar de “tendência ao Um”. Algo que considero um efeito de “estrutura”, em particular: a relação que o discurso analítico tem com seu avesso, o Discurso do Mestre. Entretanto, a nossa experiência permite dizer que prezamos por uma política de debates, que podemos retificar e ratificar.
Entendo que, em nossa comunidade, acompanhamos a Proposição enodando cartel, passe e real. O cartel sendo o órgão de base de uma Escola tem no seu cerne a produção de um trabalho num pequeno grupo no qual a identificação que oriente dito trabalho seja aquela da incomensurabilidade do 1: o objeto a e não a do mestre. O passe e seu dispositivo se sustenta numa definição, última: o analista não é predicável. A política de Escola, sua proposta: cartel e passe, se orientam pela extensão da intensão, a ser entendida assim como foi proposta por Lacan.
No laço entre intensão e extensão, cabe a pergunta pela atualidade da Política de nossa de Escola orientada pela política do ato psicanalítico. Quer dizer: temos um horizonte de pontos “impróprios” (assim são chamados pelas matemáticas os pontos de fuga) que nos permitem orientar? Esses pontos impróprios estão em questão quando debatemos estratégia, tática e política da psicanálise?
[1] LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 593.
[2] LACAN, J. (1964) Ato de fundação. In: Outros Escritos, 2003, p. 240.
[3] SOLER, C. Preliminar a todo funcionamento possível da Escola. 1999.
[4] LACAN, J. (1967). Anexo. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003, p. 570.
[5] LACAN, J. (1967). Anexo. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003, p. 248.
[6] Ibid., p. 261.
[7] LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003, p. 446.
[8] Ibid., p. 446.
[9] LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003, p. 254.