Prelúdio 06 – Ana Paula Lacorte Gianesi
Momento bastante difícil para nós (não obstante, um convite à “Guerrilha Artística”)
A arte, a ciência e a política mudam o mundo, não pelo que nele discernem, mas pelo que nele indiscernem (BADIOU, 1996,p.270).
Um enodamento, dizemos em psicanálise, dá-se por contingência. Desde um encontro poético – entre elementos contraditórios, algo cessa de não se escrever.
Em um estado de exceção, regido pelo ódio e rígido como concreto armado, os nós são mais difíceis e as diferenças, impraticáveis. O equívoco significante, a metáfora e a arte, banidos.
Extinguir aspectos culturais e as diversidades parece estar no cerne de qualquer programa autoritário. Eliminar o indiscernível criando a farsa de um mundo “cernível” (aquele, velho conhecido, do cis macho adulto branco no comando, capitaneando as regras, as regras, as regras: a heteronormatividade, o “clareamento” da raça e absurdos que tais) é uma espécie de bê-á-bá de tal modus operandi. Vociferações incultas prometem por fim aos manifestos artísticos, considerados, por esses incapazes de leitura, “arte degenerada”. Seria mesmo cômico, não fosse trágico.
O programa de governo do Sr. Jair Bolsonaro (também disponível em portais de aliados), registrado na justiça eleitoral, faz as seguintes declarações a respeito da Cultura: no tópico – Nossa Bandeira é Verde e Amarela – “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu (SIC) às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira”. No tópico – O Brasil é maior que nossos problemas – “O Brasil passará por uma rápida transformação cultural, onde (SIC) a impunidade, a corrupção, o crime, a “vantagem”, a esperteza, deixarão de ser aceitos como parte de nossa identidade nacional”. Por fim, em O novo Itamaraty, afirma que “Países, (SIC) que buscaram se aproximar mas (SIC) foram preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em termos de comércio, ciência, tecnologia […] e cultura”.
O mesmo senhor disse, sobre o incêndio que destruiu o Museu Nacional: “… já pegou fogo. Quer que eu faça o quê?”. Afirmara, outrossim, que o ministério da Cultura será uma secretaria do ministério da educação (encontramos facilmente os vídeos com o candidato bradando suas barbaridades).
A cultura da bala com ares provincianos (pois o American Way segue como boa influência cultural) procura eliminar qualquer pensamento crítico, sob o julgo de movimento vermelho… A quase total ausência de referências à cultura transmite bem a polvorosa ou azáfama que esta pode representar. Que perigo!
O horror a cultura já se fizera notar no nazismo alemão dos anos 30 e 40. A frase atribuída ora a Goebbels, ora a Goering: “Quando ouço a palavra cultura, ponho a mão no revólver”, muito embora de autoria do dramaturgo conterrâneo e contemporâneo Hanns Jost, um antinazista que encenou sua peça em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder (portanto, uma frase crítica, de denúncia) e outras tão bem conhecidas do público como: “Os verdadeiros chefes não têm necessidade de cultura e ciência” dizem por si o que agora retorna.
Podemos dizer, as artes em geral e a poesia (o poético, que nos concerne enquanto psicanalistas) doem no fascista. A cultura, enquanto livre exercício criativo e crítico, ameaça.
O grande filme “Uma noite de 12 anos”, de Alvaro Brechner, retrata a barbárie explícita do período da ditadura militar no Uruguai, através das experiências de três presos políticos: José Mojica, Eleuterio Huidobro e Maurício Rosencof.
As clássicas tentativas de desumanizar o inimigo, retirando-lhe a palavra e submetendo-o às maiores atrocidades, são ali mostradas de modo impactante. O corpo torturado, silenciado, sem tempo nem espaço, defecado, quase nu, raquítico, entre ratos, com restos, como resto, é o corpo que os estupros e os dilaceramentos históricos construíram ao longo dos anos.
A resistência à desumanização, no filme, aparece, e isso muito nos ensina, justamente pela recuperação da palavra, pela aposta na poesia e na carta de amor, assim como por figuras femininas bastante importantes e fortes: a amada, as filhas, a mãe, uma médica. Ao final, uma flor plantada deixa-se brotar em um vaso/ penico.
Essa flor que resiste e rompe, que faz da merda adubo e do penico, vaso, pode servir-nos de metáfora e de aposta no brotar a partir de frestas. Eventos/ atos que possam fazer o indiscernível presente, pertencente.
Como pensar a inclusão das condições da flor? Como colocar o corpo em luta contra as práticas que insistem em negar ao humano sua humanidade?
Penso que a noção de constelação pode nos ajudar:
“Enquanto constelação, o pensamento teórico circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como cadeados de cofres-fortes bem guardados” (Adorno, 2009, pp. 141-142).
Uma constelação é, pois, fruto da não abolição da contingência e, por isso mesmo, um ato de composição (para além da Lei, não sem ela). Uma constelação é uma variedade, é tíquica. Deixa aberto o lugar da variável. Uma constelação é, a um só tempo, composição e abertura.
Composição e abertura servem tanto aos artistas quanto aos psicanalistas.
Como a base de toda arte é conflito (uma transformação imagística do princípio dialético). A tomada (plano) surge como célula de montagem. Por conseguinte, deve ser também considerada a partir do ponto de vista do conflito […] Conflito dentro do plano é montagem potencial, que, no desenvolvimento de sua intensidade, esfacela a prisão quadrilátera da tomada e explode seu conflito em impulsos de montagens entre as peças da montagem. Como num ziguezague de mímica, a mise em scène jorra num ziguezague espacial com mesmo esfacelamento (EISENSTEIN, 1929/1977, p.177)
Eisenstein articula o método ideográfico (montagem) ao desmembramento, à desintegração, à desproporção. Faz, ainda, uma diferenciação da escola que concebe a montagem como “um pedaço argamassado a outro pedaço”, como tijolos, em um encadeamento de pedaços, como cadeias, “tijolos postos em séries para expor uma ideia”, e sua própria concepção de montagem como COLISÃO: “Concepção segundo a qual, da colisão de dois fatores determinantes, surge um conceito […] de acordo com meu ponto de vista, o encadeamento é apenas um caso especial, possível” (Ibid., p.177)
Portanto: montagem é conflito, colisão. E há uma ênfase posta no que não é cadeia. A montagem seria, antes, uma anti-cadeia que provoca esfacelamentos dos quadros estabelecidos ou esperados.
Uma constelação, enquanto o que organiza por um instante (contingente) certa ordem é, sobremaneira, propícia a uma explosão… ao não esperado, à anti-cadeia…
Entusiastas da noção de constelação, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, publicaram na Noiganders 4, em 1958, O Plano Piloto para Poesia Concreta. Ali enfatizaram o relativo perene, a “cronomicrometragem do acaso” e, o que é um manifesto a favor da política do não-todo, afirmam a renúncia à “disputa do absoluto”.
O possível da abertura ao não-todo está bem posto na renúncia ao absoluto.
Bastante interessante, também, é que uma constelação e a abertura que ela implica parecem não derivar de qualquer postura resignada. O não-todo, a fresta, o indiscernível, não se manifestam em aceitações caricatas do status quo.
O próprio Décio Pignatari escreveu (sob o lema – Guerrilha Artística – durante a Ditadura Militar instaurada no Brasil) uma fundamental proposição que articula constelação e guerrilha: A surpresa contra a redundância.
Nada mais parecido com uma constelação do que a guerrilha, que exige, por sua dinâmica, uma estrutura aberta de informação […] onde tudo parece reger-se por coordenação e nada por subordinação […] a guerrilha é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura rígida, hierarquizada. Nas guerrilhas, a guerra se inventa a cada passo […] É a informação (surpresa) contra a redundância. (PIGNATARI, 1967, p. 158)
O não-todo, definitivamente, não é belo, recatado e do lar … sem redundâncias, portanto.
Guerrilha Artística, Guerrilha Cidadã e, por que não?!…, Guerrilha Psicanalítica.
Dois exemplos recentes, dentre tantos outros, podem ser elencados como o que surge como surpresa, ganha corpo, traduz essa estrutura aberta enquanto Ato simbólico com valor Real. Em nada redundantes!
Em 29 de setembro de 2018 – Um ATO que ganhou dimensões nacional e internacional foi organizado por mulheres. O #elenão ganhou as ruas do Brasil e do mundo. Dizer não à barbárie: à misoginia, ao machismo, à lgbtifobia, ao racismo etc. Dizer não e nunca, como um grito, aos anos de seguidas mutilações e opressão.
Em 14 de outubro de 2018 – Um ATO em homenagem a Marielle Franco, morta a tiros há exatos 7 meses (crime ainda hoje não resolvido), foi realizado no Rio de Janeiro, no mesmo local em que dois brutamontes do PSL destruíram uma placa com o nome da vereadora brutalmente assassinada (assim como o motorista, Anderson Gomes). Da quebra de uma placa, mais de mil placas foram distribuídas. Ato Simbólico que aponta o Real.
Por fim, um poema-composição-abertura:
Música Mirabilis
(Eugénio de Andrade)
Talvez a ternura
crepite no pulso
talvez o vento
súbito se levante
talvez a palavra
atinja o seu cume
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
– e desperte o lume.
Referências Bibliográficas
ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ANDRADE, E. Obscuro domínio. Porto, Portugal: Editora Inova, 1971.
BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
CAMPOS, H. Ideograma. Lógica, poética, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.
CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010.
EISENSTEIN, S. (1929). O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, H. (org.), Ideograma. Lógica, poética, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.
PIGNATARI, D. Teoria da guerrilha artística. In: PIGNATARI, D. Contracomunicação. Ateliê Editorial, 1967.
[1] Termo utilizado por Décio Pignatari, em 1967, no texto: “Teoria da guerrilha artística”.