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Prelúdio 07 – Vera Pollo
Da identificação às Fake News

Da identificação às Fake News
Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie (Freud, 1938)[1]

Identificação e Sublimação
Que “O homem é o lobo do homem” souberam-no desde sempre poetas e filósofos, ou esta frase não teria sido escrita primeiramente em latim por Plauto (254 a 184 a. C.), ainda antes da era cristã, posteriormente por Thomas Hobbes (1588 a 1679), no século XVII, e mais adiante por Freud, na primeira metade do século XX. Entretanto, ocupado primeiramente com o sofrimento histérico, não foi de imediato que Freud chegou a formular a virulência da pulsão de morte. Interessava-lhe, antes, o mistério dos corpos falantes, o qual, todavia, não o impedia de desejar saber como os seres de linguagem podem influenciar-se uns aos outros e em que se baseia essa influência.

Esta pergunta o acompanhou por toda a vida: “O que faz de alguém um grande homem?” Pois, ainda em 1938 (1975, p. 131), ele voltava a escrever que “na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, diante de quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados”. Neste momento final, Freud menciona novamente que a influência de um sobre muitos passa por duas vias: de um lado, o que ele chama de uma personalidade decidida, ativa e voluntariosa; de outro, o fato de que o líder de algum modo defende uma ideia que acentua uma antiga imagem de desejo das massas. Mas conclui que o papel desempenhado pela ideia costuma ser bastante trivial. Triste sina! Ela nos conduz à constatação de Lacan[2] ( 1958/1998, p. 763-4) de que esta função de ideal do eu, que Freud havia assim esclarecido, representa “o recalque de um desejo do sujeito, pela adoção inconsciente da imagem mesma do Outro que desse desejo detém o gozo, juntamente com o direito e os meios.” Abdicando, portanto, do desejo, o sujeito goza sem saber que o faz, porque goza como Outro de si mesmo.

A partir de 1921, Freud[3] não teve mais nenhuma dúvida de que os primeiros laços sociais se originam da transformação de impulsos hostis em identificações e de que os grupos “que nunca ansiaram pela verdade” dependeriam de um destino muito específico da pulsão, qual seja, a sublimação responsável pela mudança em sua finalidade. Na verdade, desde sua escrita do caso Dora (1905), Freud chama de sublimação o simples fato de se pôr alguma coisa em palavras, o que sempre lhe pareceu ser a primeira via de saída da barbárie.

Podemos afirmar com segurança que “identificação” e “sublimação” são os dois nomes freudianos do que torna possível a vida em grupo, e que ambos estão na dependência da relação do sujeito com o Outro da linguagem e seu modo de gozar. Pois a identificação pode modificar o sujeito em vários aspectos, que vão desde o humor, até sua posição sexual frente ao outro, e sua capacidade de estar em grupo. Identificamo-nos com aqueles que amamos, mas também com os que odiamos (identificação regressiva, nomeou-a Freud), identificamo-nos com alguém que mal vimos e com quem nunca trocamos duas palavras, mas porque o percebemos em um estado de desejo ou de dor, e gostaríamos de estar nesse mesmo estado, o que é outra forma de dizer que, sem conhecê-lo (a), já partilhamos com ele ou ela um mesmo ideal. A partir daí nos tornamos “egoais”, ou seja, adotamos gestos e condutas de vida semelhantes, e cedemos de nossos impulsos verdadeiros, em benefício da sensação de sermos amados por nossos semelhantes e por aquele que veio a ocupar –na estrutura individual e/ou coletiva – o lugar do ideal. E como estes laços de amor/amizade entre os membros da comunidade resultam da sublimação da pulsão, no momento em que, por um ou outro motivo, eles se desfazem, advém a paranoia e seus fenômenos.

Em “Psicologia das massas”, Freud (1921/1975, p.117) é categórico, observando que desde que se comece por ceder nas palavras, ceder-se-á mais adiante em substância. Ele chega mesmo a dizer que podemos ceder diante da verdade, começando, por exemplo, a substituir o termo “sexual” pelo nome de um deus, Eros, deus do amor, mas nada ganhamos com isso. Não por acaso, dizemos com Lacan, que o amor pode fazer suplência à inexistência da relação sexual, mas também reconhecemos que o mito de Eros pode ser perigoso, justamente por sua capacidade de implantar um regime de servidão, até mesmo de sacrifício.

O que Freud entenderia por “ceder em substância”? Acredito que ele pensava, sobretudo, na possibilidade de que se venha a ceder em atos. Dos textos freudianos Lacan pôde deduzir que se deve recusar a psicanálise ao canalha, pois esta o transformaria apenas em um sujeito débil mental. A ética do desejo não deve ceder a nenhuma estética, ao menos em seu sentido mais tradicional, qual seja, de uma prática em busca da boa forma, desconsiderando que a manifestação do belo proíbe o desejo, pois o belo só se conjuga ao desejo por meio do ultraje, ao qual é insensível (Lacan, 1960/1988, p. 290)[4].

No decorrer de seu Seminário livro 7, Lacan (1959-60) denunciará que diferentemente da ética aristotélica – ética de um ideal – a ética freudiana sempre foi “ética do real”, a ser entendida como aquela que leva em consideração a instância moral, ou seja, o supereu com seu comando obsceno e feroz de gozo. E o desejo do analista precisa estar advertido desta instância, por isso Lacan o diferencia neste momento do desejo de Antígona, que não cede em beleza, mas caminha para a morte.

Uma minoria pacifista
}Quando a pulsão cede sua força à demanda, isto faz sintoma, ou seja, mal-estar na civilização (Freud, 1930 [1929])[5]. Mas também nos faz sujeitos. Somos uma minoria pacifista, concluía Freud em seu intercâmbio epistolar com Einstein, em 1932. Tal intercâmbio, cuja iniciativa partiu de Einstein, aconteceu em um momento histórico em que se indagava se seria possível livrar a humanidade da ameaça de guerra. Começava-se a pensar em tratados supranacionais, na ideia de um Organismo das nações unidas, ao qual nos referimos hoje como a velha conhecida ONU, recentemente desdenhada pelos ministros brasileiros que compõem a assim chamada Suprema Corte.

Freud, que nunca foi ingênuo, assinala o binômio significante empregado por Einstein: Direito e Poder (Recht e Macht), propõe imediatamente substituí-lo por Direito e Violência, e explica claramente sua proposta, distinguindo entre conflitos de opinião, que se resolvem sem uso da violência, e conflitos de interesses, que só se resolvem pela violência. Prossegue lembrando não apenas a satisfação obtida com a morte do inimigo, como a razão primeira e única para não matá-lo de imediato, qual seja, usá-lo como escravo, fazer da sua força de trabalho a mais-valia da mercadoria, equivalente ao mais-de-gozar. Em seguida, adverte-nos a carta-resposta de Freud que não mais do que dois fatores mantém uma comunidade unida: a força coercitiva da violência e as identificações.

Mencionamos acima a diferença estabelecida por Freud entre conflitos de opinião, que se resolvem linguageiramente, e conflitos de interesse, que podem ser de ordem econômica ou religiosa, alternadamente, mas que também podem ser de ordem econômico-religiosa, como os que estamos vendo surgirem na sociedade em que vivemos. Seguindo uma tradição largamente filosófica, se nos for permitido dizê-lo, em 1973, Lacan[6] menciona as três paixões do homem: o amor ( na junção do imaginário com o simbólico), o ódio ( na junção do real com o imaginário) e a ignorância (na junção do real com o simbólico).

Freud falara em pulsão epistemofílica, como o impulso que conduziria a criança na busca do saber sobre o sexo e á construção de teorias sexuais. Lacan o questiona e, a bem da verdade, o próprio Freud já havia descoberto que as três modalidades de defesa: o recalquer, o desmentido e a foraclusão, são três modalidades do sujeito “não querer saber” sobre a castração. O “não querer saber”, com intensidades variáveis, lhe parece ser a regra, pois o desejo de saber, se este brota, leva a aceitar a existência do não-saber, um dos nomes da castração do sujeito e do Outro. E isso significa dizer que esse Outro – pai ou deus, pouca diferença faz – esse Outro simplesmente não existe. De forma contrária, consentir na castração, é responsabilizar-se por seu desejo e seus atos.

A pós-verdade e as Fake News
Já tive algumas oportunidades de enfatizar que a psicanálise trouxe consigo um conceito de verdade radicalmente distinto de qualquer pensamento clássico, demonstrando-a indissociável da mentira. Isto desde a carta que Freud endereçou a Fliess, em 21 de setembro de 1897[7], e que se tornou conhecida como a “carta do equinócio”, na qual lamenta a impossibilidade de distinguir entre o evento e a fantasia, assim como na passagem do Projeto[8] de 1895 intitulada “Proto pseudo histérica”. Nesta, já se pode ler que uma primeira mentira sobre o gozo é necessária para pôr o inconsciente em funcionamento, uma mentira paradoxalmente necessária ao advento da verdade, cuja dependência da cadeia de significantes foi bastante assinalada por Lacan. Por este motivo, a verdade é sempre meio-dita, não se pode dizê-la toda, ela nada mais é do que uma semi-verdade e, nesse sentido, ela é também “irmã do gozo” (Lacan, 1969-70)[9]. Pois não há ficção que não se banhe no gozo fálico.

Em seu livro sobre a pós-modernidade, Jean-François Lyotard[10] nos dá a entender que a era da pós-modernidade é também a era da pós-verdade, uma vez que “não se compram cientistas, técnicos e aparelhos, para saber a verdade, mas para aumentar o poder” (Lyotard, 1986, p. 83). Aquilo que se pode oferecer como resposta, acentua tal autor, depende inteiramente da maneira como se interroga. Ou seja, mais da forma do que do conteúdo senso estrito. Platão já o sabia[11], o que se expressa em seus Diálogos: um fala, o outro escuta e consente.

A psicanálise não demonstrou apenas que a verdade é necessariamente ficcional e, sob tal condição, é também não-toda. Ou seja, que ela é sempre uma e mais uma e mais uma e mais uma e…., a psicanálise demonstrou também a inexistência da dicotomia entre a aparência e a essência, o semblante e o gozo. Uma vez que somos seres de linguagem, podemos fazer existir “o que não é” – os unicórnios estão aí para prová-lo – e sabemos o quanto o funcionamento de um órgão fisiológico, qualquer um, está sempre na dependência da linguagem, e do “órgão irreal a que damos o nome de libido” (Lacan, 1964)[12]. Um significante, neste caso, não qualquer um, pode fundar um fato novo, criando um antes e um depois. Trata-se de um significante – signo, que pode até estar contido em uma imagem, pois o que se dá a ver é da ordem de uma escolha, um consentimento. Um bater de pálpebras, um meneio de cabeça, neles se pode ler um signo de amor. Porém, o mesmo signo pode ser lido como de ódio. Um semblante é uma aparência que não se opõe ao verdadeiro, parte do imaginário, enreda-se no simbólico, mas se endereça ao real. Não o alcança, mas o circunscreve e o desloca.

É gigantesco o poder das Fake News. Linguistas e filósofos da linguagem ensinaram aos psicanalistas que o significante, dito “performativo”, incide no real, condensa o tempo cronológico, assujeita e comanda. Em todos os discursos, com exceção do analítico, a questão “isto é verdadeiro?” foi substituída por “Para que serve isto?” Ora, “à medida que o jogo está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que sabe e pode obter um suplemento de informação”(Lyotard, 1986, p.93).

Primeiramente Lacan (1972-73)[13] nos alertou que o saber é gozo e que o gozo do seu exercício é o mesmo da sua aquisição. Em seguida, denunciou que o discurso do capitalismo nada mais é do que uma pequena mutação do discurso de mestre, que lhe confere um circuito de retroalimentação espontânea. Nele, o sujeito assume o lugar de agente, “mas, na volta do barco, é tomado crescentemente como objeto de saber e poder. Retificado e turbinado, deve produzir de um lado; demandar e consumir, de outro lado, o que dele se espera […] O antigo senhor de escravos e de servos tinha nome e endereço; agora o mestre já não tem identidade […] Para Marx, “O capital é um vampiro que se alimenta de trabalho morto, e quanto mais absorve, mas forte de torna” (apud Santos Crespo, N., 2012, p. 131)[14].​

Freud dera o passo inaugural, afirmando que nenhum progresso tecnocientífico, nenhuma ideologia seria capaz de fazer o homem feliz, pela irredutibilidade da diferença entre a satisfação obtida e a esperada, pois estaria ancorada no recalque originário.

Próximo à construção de uma paráfrase, e de forma análoga à observação de Freud segundo a qual “O que não se escreveu dentro, retorna desde fora”, retomada por Lacan no enunciado “O que não se inscreve no simbólico retorna no real”, Vladimir Saflate[15] pôde dizer recentemente: “Quando você não acerta suas contas com a história, a história te assombra”. Tivemos uma anistia ampla, atingindo simultaneamente vítimas e algozes; não levamos aos tribunais nossos torturadores.

Ainda não acertamos nossas contas com a ditadura. Será por isso que nós, os pacifistas, parecemos ser uma minoria no atual momento, como naquele em que Freud se correspondia com Einstein? Há todo um discurso de acusação de uns contra outros em torno da sexualidade das crianças. Com base em Fake News produzidas pelo candidato da extrema-direita acusando seu rival de incentivar relações incestuosas entre pais e filhos, desvela-se não uma minoria, mas uma maioria artificialmente arregimentada em forma de exército, que propaga a “inocência” sexual das crianças. Estaremos voltando à era pré-psicanalítica? Quem é ou quem são os verdadeiros donos dessa máquina de mentiras escabrosas e assombrosas? Quem é esse mestre sem rosto e sem identidade?

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2018
Vera Pollo

[1] Freud, S. (1939[1934-38]) Moisés e o monoteísmo. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969/1976, vol. XXVIII.

[2] Lacan, J. (1958) Juventude de Gide ou a letra e o desejo in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

[3] Freud, S. (1921) Psicologia das massas e análise do eu. Op, cit., idem, vol.XVIII.

[4] Lacan, J. (1959-1960) O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

[5] Freud, S. (1930[1929]) O mal-estar na civilização. Op. cit., idem, vol. XXI.

[6] Lacan, J. (1973) Televisão in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[7] Trata-se da carta 69 da Correspondência Freud/Fliess. Op. cit. , idem, v. I.

[8] Freud, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica. Op. cit. , idem, ibid.

[9] Lacan, J. (1969-1970) O Seminário, livro 17 : o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

[10] Lyotard, J.-F. (1979) La Condition Postmoderne. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio Ed. 1986.

[11] Relendo o Parmênides de Platão, Lacan (1971-1972) nos adverte da necessidade de distinguirmos entre o Um unificante, por Freud chamado de “unário”, e o Um distintivo ou diferencial, acerca do qual se pode dizer com Frege que ele é simultaneamente “igual a zero e não igual a zero”. Lacan o chama de “uniano”.

[12] Lacan (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1ª ed. brasileira, 1979.

[13] Lacan, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

[14] Santos Crespo, Noêmia. “O poder dos impossíveis: Marx, Freud, Lacan” in Política e psicanálise – Efeitos d’Escola/Revista Letra Freudiana – Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

[15] Em vídeo divulgado em redes sociais.

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