XX Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio IV
POLÍTICAS DO CORPO EM LACAN
Christian Ingo Lenz Dunker
Desde que Lacan redefiniu o sintoma como um acontecimento de corpo, discutimos de qual corpo se trata e de qual corpo se fala. O mistério do corpo falante, o estranho corpo do fala-ser, nos levou a rever esta relação instável, e, quiçá indecidida, entre gozo e corpo. Estariam gozo e corpo em uma relação de exterioridade ou de identidade? O corpo é a substância do gozo ou o gozo é a substância do corpo? Seria ainda a linguagem o campo maior no qual o não-casamento entre gozo e corpo estaria perenemente em quase-acontecência?
A abordagem lógica e ontológica do problema do corpo acabou por obscurecer o fato de que corpo em psicanálise nunca foi um conceito primário. Freud fala emLeib (corpo no sentido humano de vida) eKörper (corpo no sentido animal), mas ele nunca nos ofereceu uma apresentação tópica, dinâmica e econômica desta noção, ademais entremeada, várias vezes com a ideia de somático (Somatisch). Freud fala em aparelho de linguagem e aparelho de memória, mas jamais em aparelho de corpo. Lacan fala em aparelho de gozo e em aparelho de significante (Automaton), mas jamais em aparelho de corpo. O mais próximo de um conceito de corpo que se apresenta em Lacan é o cadáver (Corpse), conectado à ordem simbólica pelo rito fúnebre e à cultura pela noção de ruína, túmulo ou vestígio.
A noção de corpo tornar-se-ia, assim, uma noção limite, um conceito de fronteira (Grenzebegreiffen) epistêmica entre a psicanálise, a biologia e a medicina. Isso parece encontrar apoio na criação da noção deepistemossomática (em vez de psicossomática), proposta por Lacan, mas pouco compreendida ou empregada. O impasse teórico começou a se dissolver quando, fazendo um quarto de volta na questão, percebemos que a noção de corpo em psicanálise não é primariamente ontológica ou linguística, mas política. Quando pensamos um corpo por se fazer, quando temos um corpo em trabalho de composição e reconhecimento, a situação muda de figura. Qual corpo queremos? Esse é um problema de base para a filosofia política, desde a exclusão dos corpos escravos, femininos ou estrangeiros da democracia grega, passando pela invisibilidade dos corpos pobres, negros ou inseguros, da política moderna e seu grande corpo Leviatã. Devíamos ter aprendido a potência das metáforas políticas e como elas se conectam com o trabalho comum de construção de fantasias. O corpo fantasiado, o corpo falado, o corpo inventando pela operação psicanalítica é um corpo que sofre porque é um corpo político. Várias vezes Lacan aborda o problema mostrando a insuficiência fálica de ser ou ter um corpo. Para além da crítica da propriedade de si e do possessivismo que prende e liberta sujeitos a seus corpos, para além do corpo que cria as paredes e muros desta morada do ser, há o fazer corpo, ou seja, a atividade de pertencimento e inscrição, com suas patologias e soluções específicas: o grupo, a classe e a massa. O corpo social, o corpo comum, o corpo incomum, o corpounheimlich, eis aí a nova fronteira entre psicanálise e política.