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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XI
QUAL CORPO, HOJE, NA ANÁLISE?
Alexandre Simões

A partir das primeiras elaborações e dos desdobramentos das formulações que Jacques Lacan nos propôs, por meio de seu já notório Estádio do Espelho nos idos anos 1940, ao corpo, no meio psicanalítico, sempre foi usualmente reservada a senda do Imaginário. Era raro não apreender o corpo em íntima sincronia a uma coagulação identificatória que trazia consigo, inexoravelmente, as marcas de uma alienação narcísica e, em última instância, uma forma de clandestinidade intrínseca: uma alteridade especular que toda a apresentação, a desenvoltura ou a estase do corpo era debitária.

Esta localização do corpo, ainda que pudesse passar por matizes mais sutis, parecia não romper – nos planos conceitual e clínico da Psicanálise – com a matriz identificatória e com o locus do desconhecimento e do engodo. Ambos já imbuídos no efeito de fascínio provocado pela captura não exatamente de uma imagem, mas por uma imagem.

Se somarmos a isto a ainda vívida advertência que Lacan faz a todo analista quanto aos descaminhos e ao visgo do Imaginário (advertência esta baseada em um amplo percurso crítico elaborado face à quase totalidade das apropriações da Psicanálise que se impuseram no cenário internacional de então), não é de se espantar como o corpo foi relegado a uma instância de marginalidade: o psicanalista, especialmente o de verve lacaniana, haveria de se ocupar da linguagem, do significante…

Todavia, uma guinada neste binarismo excessivamente empobrecedor (significante x corpo) se insinua, precisamente, nas trilhas dos Seminário X (1962-63) e XI (1964), quando Lacan – por conta do que a clínica do significante, passando pela mitigação do Imaginário, veio a clamar – nos faz lembrar que a pulsão é não somente um conceito engendrado por Freud entre duas dimensões (no caso, a psíquica e a somática), mas Grenzbegrieff: um conceito-limite, que ininterruptamente comporta a margem, o tangencial, a fugacidade, o resvalo em sua presença clínica. Aqui nos deparamos precisamente com uma clínica anamórfica que, tal qual o quadro de Holbein (Os embaixadores, de 1533), nos impõe um olhar, uma consideração, uma escuta de soslaio para que uma coisa-outra se introduza em nosso fazer.

Neste cenário, faz todo sentido frisar que a base da pulsão é sempre um cadinho-de-corpo-que-circunda-o-vazio e que, em sua movimentação, sob a trajetória de um circuito e não exatamente de uma reta certeira que atinge um ponto final, ela comporta, sempre, o satelitizar de um objeto que aponta para aquilo que cai de um corpo (antes mesmo de seu pseudo-início: a sua boa-forma especular).

Atualmente, cada vez mais podemos presenciar o quanto isto toca um corpo, isto que incide sobre um corpo, isto que se choca com o corpo e entre os corpos é uma presença insistente na experiência clínica de um analista. Tão presente para ele, bem como para outros campos do saber de outras epistemes: não escapa nem mesmo ao escaneamento psicopatológico dos catálogos em vigência, sob as mais variadas nomeações e agrupamentos sindrômicos, passando pelo cutting, pela anorexia, pela bulimia, pelo skin picking e desaguando nas brumas ainda pouco exploradas do hikikomori. Isto, para não mencionar os atuais pseudópodes do corpo em sua aletosfera: os gadgets já proliferantes e mesclados ao nosso cotidiano. Estes acontecimentos batem à nossa porta… o que deles escutamos para-além do mantra da alienação narcísica?

Pois bem, vejamos o Lacan dos anos 1970: o Imaginário já não é mais o mesmo do início de seu ensino, ainda que não se exclua o que está posto em sua matriz; igualmente, o corpo parece ter mudado de estatuto, já não mais sendo uma cartografia de largo alcance para a clínica a aparente dicotomia entre o significante e o encorpado. Muito ao contrário, o campo do gozo (um interessante codinome para a clínica contemporânea) não permite termos somente as demarcações de base (alienação, desconhecimento, não-apropriação) e nos convoca a um efeito origami em nossa escuta, ou seja, a diversas dobras sobre a superfície conceitual.

Talvez seja exatamente isto que Lacan tentou nos fazer ver por meio de uma conhecida passagem de seu Seminário dedicado à sobreposição entre o corpo, o que excede e o que encorpa (Encore), ao nos propor, tal qual um alerta: “…o corpo deveria surpreender mais aos analistas”!

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