XX Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio XVII
Freud em Bacurau
Glacia Nagem
(Atenção contém spoiler)
“Quem nasce em Bacurau é o que?
Gente. (responde um menino)”
Bacurau é um lugar no Brasil. O filme começa com dois corpos mortos: um jovem acidentado e uma idosa morta. A contingência ou a idade que avança são os meios esperados para morrer. Mas e a morte programada, festejada, para a diversão de alguns? Uma cidade é apagada do mapa para que um grupo de assassinos se divirta. Qual a diferença dos que foram separados para morrer e os que se juntam para mata-los? São todos gente? Quando se comemora a morte, é gente? O que faz que um corpo tenha mais valor que outro corpo? Freud[1] nos apresenta a desilusão causada ao constatar que os povos que ele supunha aculturados não tivessem conseguido praticar uma guerra sem que a violência e a baixa moral tivessem se sobressaído. Pergunta ainda sobre a reação do humano frente à morte para concluir que o inconsciente nega a própria morte, é inclinado ao assassinato em relação a estranhos e frente aos que o sujeito ama é dividido pela ambivalência.
É preciso tomar o outro como estrangeiro senão a ambivalência amor-ódio se instala. Até que se definisse, no filme, a criança morta como “um adolescente potencialmente armado”, um dos assassinos tem uma crise ‘pois crianças não poderiam ser mortas’. Se o morto for classificado de modo a não causar identificação e permanecer estranho, não provoca ambivalência, não divide o assassino e matar é “possível”.
Os habitantes de Bacurau se armam com as armas do museu. O que a trupe de assassinos não contava era que a cultura, história e sabedoria local conseguiria manter a população unida.
Me surpreendi ao ouvir risos quando os primeiros assassinos são mortos. Sendo o riso um índice do inconsciente, ali no cinema o riso revelava que o inconsciente é inclinado à morte dos estranhos. Quando não nos identificamos criamos o estrangeiro e matar é possível.
Qual o valor dos corpos? A intensão dos assassinos era aniquilar aquela população. A resposta foi a de matar ou morrer. Mas na sequência a população volta para a aniquilação. Se os corpos dos cidadãos eram carne barata para serem eliminados, na continuação os assassinos passam a ser não apenas mortos, mas tornados troféus de guerra. Chegando ao ápice da crueldade de não matar mas deixar morrer enterrado vivo o último assassino que escapa.
Qual o limite da violência? A isso Freud aposta que “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.[2] Sabemos que governos que não prezam pela paz atacam a cultura e a educação. Para a psicanálise não há corpo mais valioso que outro. Daí a necessidade de uma escuta ética e comprometida com os princípios da psicanálise como uma via para que sujeitos possam se reposicionar. Um sujeito comprometido com sua posição frente à castração não se entrega como carne barata para o gozo alheio. A psicanálise continua nos passos pacifistas de Freud, atenta aos princípios que faz com que os sujeitos atravessados por ela possam fazer operar o que da divisão é a marca que humaniza um sujeito.
Viva o cinema nacional. Viva a Ancine. Viva a arte.
[1] Reflexões para os tempos de guerra e morte, 1915.
[2] Sigmund. F. idem. p. 124