skip to Main Content

XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XIV
A POLÍTICA DO SINTOMA
Dominique Fingermann

L’analyse, je ne sais pas si vous êtes au courant, l’analyse s’occupe très spécialement de ce qui ne marche pas ; c’est une fonction encore plus impossible que les autres, mais grâce au fait qu’elle s’occupe de ce qui ne marche pas, elle s’occupe de cette chose qu’il faut bien appeler par son nom, et je dois dire que je suis le seul encore à l’avoir appelée comme ça, et qui s’appelle le réel.

[…] Il y a des choses qui font que le monde est immonde, si je puis m’exprimer ainsi ; c’est de ça que s’occupent les analystes ; de sorte que, contrairement à ce qu’on croit, ils sont beaucoup plus affrontés au réel même que les savants ; ils ne s’occupent que de ça.[1]

[1] Lacan, J. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan au Centre Culturel Français, Rome, le 29 octobre 1974. A analise, não sei se vocês estão sabendo, cuida muito especialmente daquilo que não anda ; é uma função ainda mais impossível que as outras ; mas graças ao fato de que ela se ocupa daquilo que não anda ela se ocupa de algo que precisamos chamar pelo seu nome, e devo dizer que sou ainda o único a ter chamado isso assim e que se chama o real

[…] Tem coisas que fazem que o mundo é imundo, se posso dizer assim ; é disso que os analistas se ocupam, de tal forma de que ao oposto daquilo que se acredita, eles são muito mais confrontados com o real que os outros sábios : eles só se ocupam disso !

A política da psicanálise

A invenção da psicanálise no final do século XIX – o “acontecimento Freud” – foi, sem dúvida, um feito político. O discurso inaugurado então produziu um tipo inédito de laço com o Outro, que até hoje acolhe e recolhe o que Um tem de mais singular, aberrante, descabido: a sua angústia e seu sintoma.

A angústia, embora possa paralisar até o pânico, sinaliza o que alguém tem de mais único, e, por isso mesmo precisa ser considerado. O sintoma, por sua vez – o estorvo que ele manifesta –, procede do enigma original do sujeito que o torna inconfundível. A sua procura inesgotável de sentido na razão do Outro precisa ser desmascarada e reduzida a seu ab-sens, ausência de sentido.

Eis a política do sintoma que distingue a psicanálise de qualquer outro laço.

“O sintoma institui a ordem pela qual se verifica nossa política”, anuncia Lacan [1].

O sintoma apresenta, manifesta, uma ordem, isto é, uma estrutura peculiar que condiciona e atesta a política da psicanálise. A “ordem” do sintoma consiste em sua dissidência, sua não concordância, sua objeção à razão comum, ao bom senso. A política da psicanálise, sua finalidade, seu fim, não é a supressão pura e simples do sintoma, mas a validação de seu valor de uso no laço.

A nossa política do sintoma, sobre o sintoma, com o sintoma, não consiste em normalizá-lo, em fazê-lo caber na norma, mas proporcionar que a sua exceção seja usada no laço social.

A política da psicanálise é a política do sintoma. Ela dá voz à sua revolução, do começo até o fim do processo, pois o sintoma está no ponto de partida de uma análise, e também em seu fim.

“Não há diferença, uma vez iniciado o processo, entre o sujeito que se fada à subversão, a ponto de produzir o incurável em que o ato encontra sua finalidade própria, e aquilo que, do sintoma, assume um efeito revolucionário”.[2]

Quem topa se dedicar a explorar a sub-versão do sujeito, a ponto de se colocar pelo avesso, pode chegar a deduzir o ponto emergencial de sua subjetividade, o furo traumático de sua solidão ex-sistencial. A exploração da “varidade”[3] do invólucro formal do sintoma até seu limite permite extrair e destacar seus efeitos de criação: “Pois a fidelidade ao invólucro formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico pelo qual tomávamos gosto, levou-nos ao limite em que ele se reverte em efeitos de criação”.[4]

Do começo ao fim de uma análise, o que vetoriza a cura é uma política do sintoma, em três tempos, que operam um tratamento da relação entre o universal da castração e o singular da solução de ex-sistência. São três tempos lógicos da operação sobre o real do sintoma, que parte da reclamação de seu sem-sentido, prossegue com a exploração do seu sentido suposto até a sacação de sua letra – a cifra sem-sentido, ponto original das elucubrações, voltas e volteios da associação livre.

Atualidade da política da psicanálise

Desde sua invenção em torno de 1897, a psicanálise atravessou os séculos, e sua série aterradora de tragédias, catástrofes e cataclismos, colocando a cada vez o mundo de ponta-cabeça, explodindo de diversas formas as alamedas tão bem desenhadas e iluminadas pela ciência, o capital e a razão.

O século XXI “parecia” prometer sossego, com as proezas da ciência, as vitórias da democracia, a expansão do capital, a megalomania do mercado, desenvolvidos na medida do planeta e da globalização generalizada. Mas a democracia, o capital e a ciência vêm escancarando seus limites e a generalização da foraclusão daquilo que não cabe no universal de suas pretensões totalitárias. Setembro de 2001 anunciou o tom apocalíptico deste século. Lembramos de que a etimologia de “apocalipse” remete à “revelação”: no caso, ao fato de que aquilo que esta foracluído retorna no real.

O acontecimento atual da pandemia entra nesta série apocalíptica; ela tem a estrutura do trauma, pois aconteceu e acontece ainda no mundo inteiro fora de toda pre-visão, pensamento, imaginação, medida.

Apesar daquilo que pode escandalizar aqui e acolá sobre o despreparo, as mentiras, a falta de cuidados e de empreendimentos básicos dos governos e das instituições, há algo do acontecimento que ultrapassa todas as denúncias de impotência ou imposturas. Parece que o buraco – mais uma vez – está mais embaixo.

Mais uma vez, revela-se, para nossa esperança crente de um mundo melhor, a debilidade da ciência, os limites de seu alcance, o colapso do sistema econômico globalizado, fundado no capital como fim último, o desarvoramento ou a usurpação dos sistemas governamentais; enfim, toda a prepotência da razão está caindo por terra.

Podemos/devemos denunciar aqui ou acolá os débeis e os canalhas que deveriam saber administrar esta crise; podemos/devemos organizar nossas resistências individuais ou coletivas enquanto cidadãos. Mas, no fim das contas, e de qualquer jeito, é a responsabilidade de cada um que está sendo convocada para responder a este real em jogo. De acordo com a política do sintoma cuja ética determina, o percurso de uma análise pode produzir uma capacidade fora do comum para responder perante o real em jogo no mundo.

Com efeito, enquanto o mundo corre, tropeça, cai e decai, a psicanálise segue caminhando. Ela segue cuidando do imundo à medida de seu dispositivo e da transferência, que proporciona para qualquer Um que aí se arrisca, a dupla provação da alteridade: a sua própria, chamada de inconsciente, e o inalcançável irremediável do Outro.

As condições que a pandemia impôs à nossa prática coloca surpreendentemente a psicanálise na ordem do dia. Não faço referência aqui aos múltiplos circuitos de atendimentos que foram colocados aqui e acolá, nem a essas inúmeras novas demandas que se precipitam desde o ano passado, desde que as falhas e falências da ciência, dos governos e do sistema econômico foram  divulgadas ao longo dos dias e contabilizadas pelos números de óbitos e hospitalizações.

De fato, o que surpreende é o quanto, longe do setting no qual tínhamos instalado nossas práticas, cada sessão nos convida a re-produzir um dispositivo onde o discurso analítico possa ter lugar. Caso tenhamos esquecido, reinventar a psicanálise – produzi-la novamente – está na ordem do dia para cada um.

Tivemos que nos conformar rapidamente às novas circunstâncias, re-interpretando a situação analítica com os meios oferecidos pela tecnologia, não sem interrogar com novo alento em que consistia, portanto, a especificidade do dispositivo analítico.

Interrogamos o que mantem aí o discurso, o desejo, o ato, a presença do analista.

O cansaço, o tédio, a angústia que muitos evocam, assinalam que não é tão fácil assim e que é preciso, a cada instante, acordar nossa disposição de analista com a re-instalação constante de um dispositivo coerente com o Discurso Analítico.

A invenção da psicanálise é, pois, e mais do que nunca, nossa tarefa cotidiana para que o ato possa ter lugar.

Há, na encenação inventada por Freud, algo particularmente acolhedor para a transferência da estrutura, devido a seu ritual: os cortes de seu autômaton se mostram propícios aos encontros inesperados (tyché). Sabemos, no entanto, que pode acontecer de o ritual se tornar soporífico, a ponto de seu “ronrom” se transformar numa canção de ninar para um dos parceiros e, na pior das hipóteses, para os dois. Não perder de vista “o eixo do procedimento freudiano[5]” e aquilo que implica fundamentalmente a regra da associação livre são a condição de manutenção do Discurso Analítico, ou seja, do “dispositivo cujo real toca o real”.[6]

O dispositivo de fala oferece uma consistência imaginária – a prática do sentido – ao ab-sens que o simbólico inscreve, no intuito de que a ex-sitência real possa encontrar escrita. Essa instalação cênica da  Outra cena do inconsciente – eine Andere Schauplatz – contém, mantém, sustenta um nó flexível entre as três dimensões heterogêneas RSI

Sustentar a disposição analítica e sua política do sintoma ímpar no dispositivo telefônico de nossa atualidade, sem que haja o deslocamento de um e a presença assegurada do outro, exige manter aí o espaço borromeano e segurar a corda do real para não se embrulhar junto no nó que a dimensão da fala desenrola.

Dominique Touchon Fingermann
São Paulo – Nîmes

______________

[1] Lacan, J. Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 23.
[2] Lacan, J. O ato psicanalítico. In: Outros escritos, op. cit., p. 378.
[3]  neologismo usado por Lacan que condensa verdade e variedade evocando a relativização da verdade não toda
[4] Lacan, J. De nossos antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 70.
[5] Lacan, J. Da psicanálise em suas relações com a realidade. In: Outros escritos, op. cit., p. 351.
[6] Lacan, J. …Ou pior. In: Outros escritos, op. cit., p. 545.

Back To Top