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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XV
O SINTOMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
Zilda Machado

Em setembro próximo a comunidade da EPFCL-Brasil estará reunida em Salvador, mesmo que virtualmente, para a colheita de dois anos de trabalho sobre a questão que vimos desenvolvendo nos Fóruns – “O sintoma e o psicanalista: topologia, clínica e política” – nosso tema de trabalho. É verdade que a pandemia atrasou nosso Encontro em um ano, pois esperávamos que ela passasse logo e pudéssemos, ainda em 2020, ter o encontro dos corpos para os afetos no trabalho e nas festas, tão necessários para a nossa própria saúde. Infelizmente isso não aconteceu. Não só pelo real de uma pandemia que nos mantém isolados esperando a vacina, mas pelo que se depreende de uma política genocida em curso em nosso país onde a vida passa a ser tão sem valor que o assombro de 500 mil mortos não parece comover quem poderia fazer algo aí, não há vontade política para isso.  Mas, com Lacan perseveramos e seguimos sustentando com nosso desejo a psicanálise, “o pulmão artificial para esse mundo quase irrespirável”, como ele nos diz, tanto na clínica quanto na pólis, como poderá ser comprovado nesse evento.

A psicanálise foi inventada por Freud, um médico neurologista que se interessou pelo sintoma dos corpos comandados por um saber que habita o sujeito sem que dele, ele nada saiba. A princípio lhe pareceu que o sintoma fosse uma reação direta a um trauma factual. A psicanálise propriamente dita surge quando o sintoma assume para Freud a conotação de expressão de um desejo inconsciente recalcado. Ou seja, o sintoma é o próprio retorno do recalcado, uma solução de compromisso entre a pulsão e a defesa, entre o desejo e a censura, trazendo à tona, como uma mensagem, a verdade deste desejo. Por isso Freud fala que o sintoma é a vida sexual do sujeito, é maneira disfarçada de satisfação da pulsão.  Portanto, para Freud, o sentido do sintoma é sexual. E assim se dá o acesso do sujeito à sexualidade: de forma conflituosa e sintomática. E assim inaugura-se o psiquismo na interdição do objeto primordial, matriz à qual se dirige originalmente o desejo incestuoso que cai sob a barra do recalque, colocando o sujeito para sempre à procura do objeto perdido. Interdição – interdicção – inter-dito: a sexualidade humana está fadada a se realizar necessariamente através das palavras, do gozo fálico. Mas lembremos que Freud nos aponta também, nos anos 20, o núcleo duro do sintoma, impossível de ser desfeito.

Também Lacan, no início de seu ensino, toma o sintoma pela vertente da metáfora, do nó de significantes, da verdade re-velada. Na Instância da letra ele diz: “é a verdade do que o desejo foi em sua história que o sujeito grita através de seu sintoma”[i]. Mas, ao longo de seu ensino, fará profundas modificações em sua abordagem do sintoma, o que trará diversas consequências para o dispositivo analítico e principalmente para a questão do final da análise. Ao final de seu ensino dirá e o demonstrará no nó borromeano: o sentido do sintoma é um só: é o real. O sintoma provém do real do nascimento do sujeito e seu sentido é o real. Estas modificações o levam a, inclusive, trazer uma outra escrita para o sintoma que se depreende ao final da análise: sinthome.

Falar do nascimento do sujeito leva-nos a duas questões fundamentais: o corpo e lalíngua. O corpo do vivente traz como principal característica, nos diz Lacan em A Terceira[ii], que “isso se goza”, ou seja, goza sozinho, como o ronrom do gato. Mas o corpo do ser falante não. Por não ter o instinto que o oriente, a substância gozante nele não goza sozinha. Por isso o infans – prematuro e desamparado – precisa ser acolhido por um da mesma espécie, mais experiente, o Outro primordial. A entrada em jogo do Outro Primordial e do aluvião de sons que daí provém, a sonata materna, traz lalíngua, a linguagem que concerne à psicanálise, linguagem ainda sem significação, onde o que impera é a equivocidade. Em lalíngua o que se escuta é somente o som, sem sentido, mas que por carrear o desejo, a presença pulsional do Outro primordial, tem a potência de evocar, provocar, convocar a substância gozante, o gozo do vivo, a se eriçar. O gozo aí experimentado enlaça corpo e lalíngua e deixará uma marca inscrita como cifra, uma letra. Ponto mínimo do simbólico, essa letra, a letra do inconsciente, marca a parturição daquele sujeito em sua absoluta singularidade, pois, lembremos, não se trata do falado, mas do escutado. O sintoma é f(x), como nos diz Lacan, é função, como na matemática, dessa letra inconsciente[iii]. Lalíngua, portanto, o simbólico que causa o gozo e que ao mesmo tempo civiliza o gozo, decanta um saber inscrito, cifrado, marcado no corpo, forjando o inconsciente como o real que dá voz ao corpo, que dá voz à substância gozante. E daí advém também todo o trabalho da linguagem em elucubrações sobre esse ponto obscuro da estrutura.

Portanto, o sintoma, aquilo que leva todos nós à análise, é feito do material de lalíngua, com sua equivocidade, articulado ao gozo do corpo. Daí que, por mais que se possa ler o sintoma, decifrar uma mensagem, reconhecer uma substituição metafórica, a análise sempre conduzirá ao seu núcleo real, que não encontra a via da linguagem para se expressar e, como letra, não cessa de se escrever. Todos os trabalhos a serem apresentados no Encontro de Salvador poderão demonstrar como cada colega elaborou as consequências clínicas, éticas e políticas de sua prática, demonstrando como a psicanálise opera e porque podemos dizer que ela é profundamente política.

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[i] LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 522
[ii] LACAN, J.  A Terceira. In: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manancial, 1988.
[iii] LACAN, J. Seminário RSI. Lição de 21 de janeiro de 1975. Inédito.

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