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XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio V
É PAU, É PEDRA. É O FIM DO CAMINHO?
Lia Silveira

Ano em que nos preparamos para debater o tema “O Sintoma e O Psicanalista” e, parece ironia, nunca fomos convocados tão visceralmente a lidar com isso que campeia. É Iku, me disse alguém que escuto. A morte ela mesma, como é chamada no candomblé, patrimônio cultural e religioso da Bahia que hospeda nosso Encontro. Na psicanálise, damos a isso outros nomes: em Freud, é aquilo que não tem inscrição no inconsciente. Para Lacan, aquilo que só se inscreve por não cessar de não se inscrever. Psicanálise e religião, dois modos distintos de responder ao real que dessa vez se mostra nesse evento inédito, em que o mundo globalizado se dobra frente ao inimigo invisível. Reis, Papa e dirigentes governamentais… quase todos. Menos no Brasil, onde o encontro traumático avança da “morte morrida” da epidemia para a “morte matada” produzida por um governo e uma classe empresarial que insistem em sacrificar alguns (pretos de tão pobres e pobres de tão pretos¹) para salvar a economia.

E então, nós, comunidade herdeira do que ressoa desde Freud até aqui, que podemos diante do horror que nos chega? Muitos de nós nos colocamos a pergunta quando tivemos que fechar o consultório do dia para a noite, sem previsão de quando poderemos retornar. E, antes mesmo de poder elaborar, a resposta veio em ato com a disponibilização da escuta “on-line”, “na linha” da urgência que se produziu: “I’m (a)live”! Ao vivo, muito vivo, com o corpo presente, sim, e sustentando a causa para que ali venham se alojar, na singularidade de cada um, olhar e voz.

As sequências desse ato ainda estarão por ser recolhidas e elaboradas, nosso Encontro certamente será uma oportunidade disso. Mas uma coisa já podemos dizer: não há nada nessa oferta que coloque o analista em posição de maestria sobre o mal-estar da pandemia. Um sujeito analisado não é menos susceptível à miséria da vida cotidiana que os outros, como afirmou Freud – que, aliás, sofreu na pele as consequências da gripe espanhola com a perda de sua “querida Sophie em flor”. O que sustenta esse ato é o saber que o analista extraiu de sua própria análise, aquele de que o encontro traumático atual só faz re-editar o que já foi inscrito como fora-de-sentido para cada sujeito. Assim, embora a ciência considere que estamos todos vivendo a mesma realidade, sabemos que cada um que começa a falar (que seja agora através de um computador ou celular) só o faz colocando a angústia nos seus significantes e no enquadre de sua resposta fantasmática.

Certa vez, deparei com uma entrevista de uma psicóloga que atendeu sujeitos em uma situação de catástrofe, em um povoado destruído por um tsunami. Ela estava muito surpresa, pois, a despeito da mortandade e da penúria material em que aquelas pessoas se encontravam, elas só falavam de suas desventuras amorosas. O psicanalista é alguém que não estranha mais isso, pois ele sabe, de sua própria experiência, que a miséria neurótica é o que realmente impede alguém de viver o possível.
Já ouvimos várias vozes anunciarem o fim do mundo como o conhecemos. Não temos nem mesmo muitos motivos para apostar que o porvir será melhor. A doença, a morte e a destruição da economia deixarão seu rastro. Mas podemos sustentar e transmitir algo dessa outra peste que vem contagiando de Freud até aqui, a partir da experiência da análise: é porque é efêmera que a vida se torna ainda mais valiosa e é por nos sabermos marcados pela castração que o desejo advém. É essa torção que nos permite continuar reinventando a vida, sustentando as análises que conduzimos e respondendo à nossa pergunta do título com os versos que seguem na canção:

“É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol …
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.”²

Fortaleza, 11 de abril, 25o dia de quarentena.

 

[1] VELOSO, Caetano. Haiti. 1968.
[2] JOBIM, Tom. Águas de Março. 1974.

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