Skip to content

XXI Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio VII
O REAL E A VIDA QUE SE LAVA ADIANTE
Leonardo Pimentel

Quando recebi o convite para este prelúdio, ainda não havia sido declarado o caráter pandêmico do novo coronavírus, e eu pretendia escrever, então, sobre a força paradigmática que a topologia emprestava à psicanálise ao testemunhar o Real da estrutura. Contudo o que temos vivido me parece também atestar um Real. Mais do que um advento, eu diria até uma infecção de Real, já que a origem latina do termo infecção, infectio, implica um não fazer, um obstáculo como aquele que o Real coloca, “o real enquanto se põe em cruz para impedir que as coisas andem” (Lacan, 1974).

Essas coisinhas ardilosas, os vírus, ninguém sabe se estão vivos ou não. Diferente dos seres considerados “vivos”, o vírus não possui ribossomos, fábricas de proteínas essenciais à reprodução celular e, portanto, à vida biológica. Por isso, ao invadir uma célula, o vírus sequestra os ribossomos para se replicar. Mas há também os chamados “vírus gigantes” que apresentam estruturas homólogas aos ribossomos e que – pasmem – podem ser infectados por outros vírus. Este estranho canibalismo desconcerta os biólogos ao provocar a questão: Como então definir o que é a vida?

Em A Terceira, Lacan localiza a vida de modo topologicamente preciso no nó borromeano e explica: “E por que eu escrevi no nível do círculo do Real a palavra ‘vida’? É que, incontestavelmente, além desse termo vago que consiste em enunciar o gozo da vida, da vida nós não sabemos mais nada”.

 

 

Gozamos dela, mas a vida está no campo do impossível: do impossível de ser definido, esquadrinhado, categorizado. Lacan aponta, inclusive, o impossível de se imaginar como, a partir da enorme variabilidade de elementos químicos e das contingências do universo, a vida pôde se estruturar a partir dessas minúsculas hélices de DNA, que formam justamente um nó. Assim conclui, na mesma conferência, que “algo no Real – e não qualquer coisa, a própria vida, estrutura-se por um nó”.

O nó borromeano, a estrutura, é Real. Logo, a topologia não pode ser reduzida ao Simbólico ou ao Imaginário que certamente confluem para sua articulação. Por exemplo, em O Seminário, livro 22, Lacan propõe diferentes conformações do nó borromeano para a tríade “inibição, sintoma e angústia”. Mas que relações existem entre essas diferentes estruturas? Qual seria a natureza dos encadeamentos entre R, S e I, em cada caso? Seriam eles equivalentes?

É impossível responder tais perguntas somente através de figuras e descrições, sem operar sobre a materialidade dos objetos, sem manuseá-los. Trata-se da necessidade de um fazer, contrário à infectio. E, portanto, o recurso à topologia é um convite ao trabalho. Nosso próximo Encontro será um tempo de recolher o que aprendemos ao puxar, cortar e amarrar essas tiras de barbante, e também de relançar tais fios e fazer novos laços. Pois trabalhar com topologia é colocar a mão na massa… sujar as mãos. Mas não esqueçamos de lavá-las.

O que me traz de volta ao coronavírus e ao Real da vida. Em Les non dupes errent, Lacan comenta: “Não sei se sabem o que é a vida, mas é também curioso que isto seja problemático. Avida [lavie] que, nesta ocasião, escreverei como fiz com lalíngua, em uma só palavra. Só para sugerir que não sabemos dela muita coisa exceto que ela se lava”.

Que lavemos então, que façamos o possível frente ao Real que nos assola, puxar aqui, dobrar ali, manejando e levando adiante.

Referências
Lacan, J. (1973-74). Le séminaire, livre 21: Les non dupes errent. Seminário inédito.
Lacan, J. (1974). La troisième. Texto inédito.
Lacan, J. (1974-75). Le séminaire, livre 22: RSI. Seminário inétido.
Pearson, H. “Virophage” suggests viruses are alive. In: Nature, 454, 2008. Disponível em: https://www.nature.com/articles/454677a.

Back To Top