XXIV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos
10, 11, 12 e 13 de outubro de 2024 – Brasília/DF
Prelúdio I
A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos
Sonia Alberti
Expressão que designa os sujeitos reduzidos a pedaços de corpos escrutinizados pelo discurso que se vulgarizou no início do século XX dando esteio ao neoliberalismo, mas motivado pelas conquistas anatomo-fisiológicas da última parte do século XIX como o denunciava Lacan relendo Foucault, a “criança generalizada” sobe à cena de nosso Encontro. É uma questão séria, que denuncia o risco que estamos vivendo enquanto clínicos na cidade dos discursos, e que já levava Lacan em 1967 a equivaler esses sujeitos assim designados a objetos condensadores de gozo, tais as crianças. Em O Avesso da Psicanálise, Lacan (1969-70, p. 61) o articula até mesmo com sua máxima de que o sujeito recebe do Outro a sua própria mensagem sob forma invertida: a metade sujeito dos ditos “adultos”, recebe sua própria mensagem sob forma invertida ao ser o objeto a que condensa o gozo que o Outro goza, quando goza dele como objeto a. Ele não é a metade criança batida da fantasia – apenas no estágio que Freud (1919/2006) chama de intermediário –, mas “metade sem par da qual o sujeito subsiste” (Lacan, 1971/2001), associada à metade de frango do conto que introduziu Lacan na divisão subjetiva (cf. Lacan, 1972/2001, p. 456). Revisitando o lugar da mulher como objeto, Lacan também o diz assim: “a mulher se produz como objeto justamente não sendo o que ele (o macho) é. De uma parte, diferença sexual, da outra, ser isso a que ele renuncia como gozo” (1969-70, p. 90). Por isso, observa ele na sequência, é tão essencial colocarmos a questão do lugar da psicanálise na política. E é também isso o que visa esse Encontro pois fazia tempo que não organizávamos um evento em nível nacional em torno da criança! Na realidade, muitas décadas mesmo e, de repente resgatamos tal enfoque quando nos damos conta, por exemplo, de que as crianças são as mais sujeitas a taxionomias e segregações… TDAH, TEA, TDO…
O momento em que acolhemos o tema coincide com dois lançamentos: por um lado, o do nosso próximo encontro internacional, a se realizar em São Paulo em 2026, que com a ética verifica como responder à pergunta “o que fazemos em consequência dessa obra [de Freud]” (Lacan, 1967/2001, p. 363) e, por outro, com o da publicação oficial do seminário de Lacan sobre o Ato psicanalítico, no final do qual Lacan nos diz, justamente que, se somos psicanalistas e não nos deixamos apenas levar pelo instinto clínico (Lacan, 2024, p. 268), somos convocados a observar que, por estarmos no lugar de objeto a no que fazemos em consequência da obra de Freud, “isso nos dará também uma maneira totalmente outra de abordar a diversidade dos casos. Talvez [o psicanalista então] poderá encontrar uma nova classificação clínica, distinta daquela da psiquiatria clássica” (idem, p.272), caso contrário apenas seguirá o que dita o discurso dominante.
Hoje, mais de meio século depois dessa lição do seminário sobre o Ato, o discurso dominante já não é mais o da psiquiatria clássica, o que aliás Lacan já previa em 1967, como retoma Ida Freitas em seu texto que nos convida para este nosso Encontro. Na ocasião, Lacan já indicava que, ao imiscuir-se com o capital, a ciência produziu uma mudança de dimensão planetária, porque em nível de comprometer “todas as estruturas sociais”, levando a uma “subversão sem precedentes”, cuja consequência fundamental é a cada vez maior segregação. De um lado, determinada pelos imperialismos, de outro, buscando uma solução para que as “massas humanas, devotadas ao mesmo espaço […], permaneçam separadas” (Lacan, 1967/2001, p. 363). Eis onde surgem os diagnósticos infinitos, seguindo protocolos ditados pelos laboratórios, sem qualquer questionamento, nem no campo da saúde, nem no da educação. Ao contrário… uma mesma criança pode receber mais de um deles, aliás, com bastante frequência se imiscuem TDAH e TEA nos dias de hoje.
Lacan então se pergunta: o que pode o psicanalista?
Para com ele respondermos, proponho retomar a máxima freudiana segundo a qual a criança é um perverso polimorfo (Freud, 1905/2013), o que, em termos lacanianos podemos ler como muito apropriadamente, um ser de gozo: o bebê chupa, insaciável; se agita e pode até ser tirano; se percebe defecando e goza com isso; olha de soslaio porque experimenta o olhar para aquém do ver e se liga na voz, mais do que nas palavras, buscando repeti-la sem cessar, gozando-a. Faz isso sem se preocupar com o que um adulto faria apenas em sua vida privada, “privada de quê?” se pergunta Lacan (2024, p. 272), se não dessa liberdade de gozo que a criança personifica?
Como já dizia essa referência histórica no que tange a educação das crianças, ou seja, Rousseau (1772/1999), a criança goza porque é livre, e é essa sua liberdade de ser de gozo que tanto incomoda por sempre ser demais – quando então aqueles que se aferram ao discurso dominante lhe opõem os transtornos, ignorantes que são esses classificadores do fato de que o gozo não estanca por lhe ser dado um diagnóstico, ao contrário, isso costuma reforçá-lo por não haver outra saída se não a própria identificação com o índice que lhe é imposto.
Se a psicanálise nos ensina, entre tantas outras coisas, que a liberdade é um engano, pois não há a possibilidade de eu me dizer ser sem me utilizar do Outro – donde ou eu não sou e ou eu não penso, no anti-cógito lacaniano –, ela também nos ensina que o gozo é efeito de discurso, de modo que na clínica, seja ela com crianças ou com adultos, não só o psicanalista não toma isso como natural – como o faria Rousseau –, mas, sobretudo, aposta numa outra liberdade, a de que isso se diga, de modo que, independente da idade, o sujeito tenha a possibilidade de dizê-lo de outro modo.
Para tanto, é necessária a transferência, pois sem ela não há clínica psicanalítica. Rousseau também já observava: é importante que preceptor e aluno se façam amar um pelo outro (Rousseau, 2004, p. 33). O que não é sem relação com o que Lacan (1994, p. 101), bem cedo em seu ensino, pode ditar quanto à importância do dom de amor para a criança: frustrá-la na demanda para indicar-lhe a via do desejo. Somente então, como diria quinze anos depois, será possível fazer valer que eu lhe peço que recuses o que lhe ofereço porque não é isso (Lacan, 2011, p. 82). Se não foi possível transmitir aquele dom de amor, não é possível depois recusar a oferta de modo que a própria oferta de diagnósticos se torna irrecusável. Na contramão disso, “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (Lacan, 2004, p. 209), e esse é, antes de mais nada, o desejo de viver, como Freud (1910/1996, p. 231) o anunciou.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund (1905/2013). Tres ensayos de teoría sexual. In: Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu. v. VII, pp. 109-210.
_______ (1910/1996).Contribuiciones para un debate sobre el suicidio. In Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu. v. XI, pp. 231-2.
_______ (1919/2006). ‘Pegan a um niño’. Contribución al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores [AE], 1ª edição, 8ª reimpressão, 2006. vol.. XVII.
LACAN, Jacques (1994). Le Séminaire, livre IV, La relation d’objet [1956-57]. Paris: Seuil.
_______ (1967/2001). Allocution sur les psychoses de l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil. pp. 361-371.
_______ (2004). Le Séminaire, livre X, L’Angoisse, [1962-63]. Paris: Seuil.
_______ (1971/2001). Lituraterre. In: Autres écrits. Paris: Seuil. pp. 11-20.
_______ (1972/2001). L’Étourdit. In: Autres écrits. Paris: Seuil. pp. 449-495.
_______ (2011). Le Séminaire, livre XIX, … ou pire [1971-72]. Paris: Seuil.
_______ (2024). Le Séminaire, livre XV, L’Acte psychanalytique [1967-68]. Paris: Seuil.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 3a Ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.