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XXIV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos
10, 11, 12 e 13 de outubro de 2024 – Brasília/DF

Prelúdio V
O que o gozo da generalização fabrica
Joseane Garcia

Creio que é tempo de o Brasil aprender a amar a natureza – as florestas, os rios, os lagos, os bichos, os pássaros. Creio que é preciso reformular nosso conceito de patriotismo. Patriotismo, para mim, é proteger o nosso patrimônio. Artístico, cultural, e a terra, que nos dá tudo isso.
Burle Marx [1]

Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis.
Lacan, [2]

 

O tema do nosso XXIV Encontro – A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos – é um convite para debatermos sobre os impasses de nossa época. Ao falar da posição da criança como objeto de gozo do Outro, Lacan destaca a expressão “criança generalizada”[3] e aponta para a posição de objeto em que o homem contemporâneo é colocado pelo discurso da ciência, que sabemos, está aliado com o discurso do capitalista. O que está em questão no uso do termo “criança generalizada” é a relação do sujeito com o gozo, seja um adulto ou uma criança.

Gostaria de trazer para o debate a crise climática planetária. No primeiro semestre, o Rio Grande do Sul foi devastado por fortes chuvas em todo o Estado. Neste semestre é o Brasil todo que queima. Há fogo de norte a sul, de leste a oeste. O fogo destruiu áreas de vários biomas do país, incluindo Amazônia, Pantanal e Cerrado. A fumaça se espalhou encobrindo várias cidades em diferentes regiões, restando às crianças brincar na chuva preta.

O capitalismo prospera mediante a exploração da natureza, tanto como fonte de recursos para serem convertidos em mercadorias, quanto como depósito de seus resíduos, sendo o aquecimento global uma das manifestações mais devastadoras do sistema capitalista sobre o ambiente. Mas essa não é a única manifestação dele em tempos de crise climática. Um novo diagnóstico tem surgido ao redor do mundo: ansiedade climática ou ecoansiedade. São sintomas de ansiedade, depressão e pânico, mas agora com raízes no estresse causado pelas notícias aterradoras sobre as mudanças climáticas do planeta. O termo é apresentado pela Associação Americana de Psicologia, como um “medo crônico de sofrer um cataclismo ambiental que ocorre ao observar o impacto, aparentemente irrevogável, das mudanças climáticas” [4].

A fabricação desse novo diagnóstico parece servir como tamponamento de uma crise climática, onde a discussão é deslocada para quem sofre com as consequências e não para uma mudança real que precisa ser feita para estancar o mal climático que avança a passos largos. O uso de nomenclaturas diagnósticas como rótulos que pretendem estancar o mal-estar contemporâneo é mais uma estratégia do discurso do capitalista com o que vou chamar de gozo da generalização.

A generalização da criança destacada por Lacan implica na abolição do que poderia ser a diferença em relação ao adulto: a responsabilidade em relação ao gozo.

Na proposta da ansiedade climática, a descrição dos sintomas serve para todos, ou seja, uma resposta única para as questões climáticas traumáticas. Ao classificar o sofrimento do sujeito, o discurso científico cooptado pelo discurso do capitalista produz generalizações, massifica e objetifica o que é subjetivo. O que chama a atenção nas nomenclaturas diagnósticas é que junto delas vem sempre uma prescrição medicamentosa. Cria-se uma falsa demanda e assim entra-se num círculo vicioso, deixando a sensação de que não há saída para seu sofrimento a não ser consumir a medicação que promete solução, atualizando a lógica de consumo do discurso do capitalista.

Essa lógica discursiva soterra a subjetividade e cristaliza um diagnóstico universal, desviando os seres falantes de encontrar nomes singulares para esquadrinhar o real em jogo do seu sofrimento. Na clínica, essa situação aparece como uma espécie de desimplicação do sujeito, que passa a buscar nos diagnósticos um saber que fale por ele e, consequentemente, uma fórmula que acabe com o seu mal-estar. O discurso do capitalista se aproveita da paixão da ignorância do sujeito de “não querer saber nada disso”, deixando-o distante de se deparar com o saber furado do Outro. A desresponsabilização em relação ao gozo é o resultado da ação generalizante do discurso da ciência em aliança com o capitalista.

Separar-se dos significantes universais advindos do campo do Outro é um dos efeitos do discurso do analista que parte do pressuposto da impossibilidade da relação sexual, de que nem tudo é possível. A aposta da psicanálise é que a resposta ao real é impossível de ser generalizada e o ato de um analista deve incidir na responsabilização do sujeito frente a seu gozo.

Até Brasília e bom encontro para nós!!

 

[1] Entrevista publicada originalmente na revista Veja, Edição 263, 19 de setembro de 1973.
[2] LACAN. J. (1998). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 873. (Trabalho original proferido em 1965-66)
[3] LACAN, J. Alocução sobre as psicoses das crianças. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original proferido em 1967)
[4] CLAYTON, S.; MANNIN, C.; KRYGSMAN, K.; SPEISER, M. Mental Health and Our Changing Climate: Impacts, Implications, and Guidance. 2017. Disponível em: https://www.apa.org/news/press/releases/2017/03/mental-health-climate.pdf. Acesso em: 18/05/2024.

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