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XXV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A FORMAÇÃO DO ANALISTA: URGÊNCIA DA NOSSA ÉPOCA
16, 17, 18 E 19 DE OUTUBRO DE 2025 – MACEIÓ/AL

Prelúdio IV
A formação do analista: do algo(z)ritmo ao aguçoso ritmo da po-ética repentista
Isabela Ledo
Membro do FCL – São Paulo

De que serve o anelão
Qui esses doutô tem no dedo,
Se de uma impruvisação
Eles não sabe o segredo?
As escóla, a academia
Faz doutô de todo jeito:
Faz doutô de engenharia
Doutô juiz de direito
Doutô pra curar duença,
Faz inté doutô dentista.
Mas, nunca há de fazê
Um doutô sai de lá,
Formado em puisia
Num poeta repentista
(Zé da Luz, 1962)

 

O ensino lacaniano é atravessado por um esforço na criação de estratégias para que a formação do analista não se sufoque em câmaras de eco. Tal desafio parece se redobrar nesta era de algo(z)ritmo, em que os mecanismos de fechamento da linguagem, com suas bolhas auto ritualizadas, se tornam ainda mais perversos e afetam nossos modos de fazer laço e de produzir saber. Do empuxo à tecnificação da experiência, via “produção de conteúdo”, uma resposta pela via da “produção de uma forma” singular, ética, no campo das relações, ainda pode ser a velha novidade mais potente.

Quando Freud[1] e Lacan[2] propõem a experiência analítica como principal modo de formar-se, não se trata de uma adesão missionária à análise; mas de uma aposta numa formação refundada, a cada vez, como um lugar de experimentação com aquilo que, da linguagem, não é doutrinável, nem racionalizável. Essa dimensão maternal da língua, que não se dobra à comunicação, se oculta na forma bestial, burrocrática como nos escolarizamos via decodificação do sentido[3]; e retorna como impasse numa formação analítica. Se as análises têm seus fins, mas a formação permanece, como organizá-la de modo que se recriem condições para que possamos seguir atravessados pela experiência, e não para que produzamos senhores dela?

Do já descrito dos textos, do empuxo atual ao prescrito, como extrair o escrito, em sua função? Escrito[4] que não se confunde com arquivo morto, mas é meio de transporte por onde a língua viva, enquanto acontecimento, tem a chance de fazer um saber móvel viajar. A função do escrito[5], no discurso analítico, seria de fazer surgir o que do significante não se articula ao sentido. Um operador de corte, de furo, que se vale de uma estrutura rítmica e pega as palavras pelas asas[6], deixando à mostra o que delas vaza.

Trago, assim, o ritmo aguçoso da poética repentista pelo que ela nos ensina sobre uma posição ética de abertura em relação ao Real da língua: ao não se valer de uma leitura escolarizada; sustenta-se numa linguagem escrita no ar, na (h)ora…lidade do encontro. Escuta sensível, fala entoada, desenha paisagens sonoras de um ser(tão) que se furta ao sentido. Da trouvoada, o estrondo é grande, e faz ressoar ao vento, em versos eriçados, o sopro do fole, o oco do folêgo, tangendo palavras fatigadas. A sós, ossos assoviam, olhos ondulosos tropeçam em pés que descompassam a-língua, desembocando numa outra geo-grafia, numa corpografia. Atraverssados pelos coaxos dos riachos em ribanceiras, letras rasteiras rastejam pelos brotos das bromélias na brenha do chão, para a beira d´ouvido, calanguear. Saber-fazer da Caatinga, Cantiga. Violar cantinelas de sentidos calejados.

É esta abertura para os saberes da oralitura[7], que fazem do encontro com a palavra, uma operação de desalojamento do privilégio da letra gramatizada como única via de formação, que pode nos trazer um arejamento precioso. Um saber ventilado o qual se trama no trespassado das epistemes que tem “o cheiro do vinho das uvas frescas do Lácio”[8] com aquelas que “tem a cor de Inácio, da serra da catingueira, um cantador de primeira que nunca foi numa escola…”[9].Bordado roto, que faz de qualquer modo de dizer vendido como oficial, um trapo, uma trapaça perante a grande oficina que é a língua -algo vivo, que se desfaz e se refaz numa costura coletiva, pelos matizes atemporais das diferenças, dos desvios.

Aposto que uma formação organizada em torno de um exercício de uma sensibilidade[10] pode nos abrir mais chances de romper com as artimanhas claustrofóbicas da algoritmização do saber destes tempos. Parece urgente que cada um que se proponha a sustentar a chance do discurso analítico, possa produzir meios singulares de afiar a tal sega cortante da verdade do campo aberto por Freud[11], fazendo ressoar aí os versos feito a foice! Este gesto po-ético inaugural da psicanálise que precisa ser repe(n)ti(a)do para que as palavras voltem a cortar[12] e a alargar as possibilidades de um encontro mais diverso. Que venha Ala(r)goas!

 

[1] Freud, S. (1976). Análise leiga (A. Cabral, Trad.). In J. Strachey (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 179–250). Imago. (Trabalho original publicado em 1926).
[2] Lacan, J. (2018). Os não-tolos erram/Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974 [Recurso eletrônico]. In J. Lacan, Porto Alegre: Fi. (Trabalho original publicado em 1973-1974).
[3] Lacan, J. (2003) Posfácio ao Seminário 11. (1973) In: ___. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1973).
[4] Lacan, J. (2003) Posfácio ao Seminário 11. (1973) In: ___. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1973).
[5] Lacan, J. (2010). Seminário XX Encore, Escola da Letra Freudiana. Edição não comercial. (Trabalho original publicado em 1972-1973).
[6] Valéry, P. (2007). Variedades (M. M. de Siqueira, Trad.). Iluminuras.
[7] Martins, L. M. (2021). Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo‑tela. Cobogó.
[8] Cordel do Fogo Encantado. (2001). Cordel estradeiro [Música]. Rec-Beat Produções Artísticas.
[9] Cordel do Fogo Encantado. (2001). Cordel estradeiro [Música]. Rec-Beat Produções Artísticas.
[10] Aposta experimentada, principalmente, entre os laços de um cartel de poética “Noite, Mar ou Distância?”; do coletivo Esternas, extensão da Rede de Pesquisa lógica e poética; bem como dos seminários Ressonâncias (poéticas) da Palavra e Tomar a Palavra: enlace do falasser?, no FCL-SP.
[11] Lacan, J. (2003). Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris. In Outros escritos (pp. 45-75). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
[12] Duvivier, G. (2024). Céu da língua [Peça de teatro, texto e atuação: Gregório Duvivier; direção e dramaturgia: Luciana Paes]. Apresentado em 2025, Brasil.

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