XXV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A FORMAÇÃO DO ANALISTA: URGÊNCIA DA NOSSA ÉPOCA
16, 17, 18 E 19 DE OUTUBRO DE 2025 – MACEIÓ/AL
Prelúdio IX
A psicanálise “caiu na boca do povo” ou na “malha fina”?
Silvana Pessoa
AME-EPFCL, FCL Salvador
No Brasil, maio é o período no qual as pessoas declaram o Imposto de Renda (IR). Nessa época, escutei o seguinte áudio de um contador de uma paciente (que não entrou em análise, logo, não se tornou “analisanda” de si mesmo) para quem eu emiti um recibo pela minha PJ. Disse ele:
A pessoa aí (referindo-se a mim) colocou sessões de psicanálise e a psicanálise não é dedutível não; só as de psicologia, psicanalista não. Porque você sabe, né… A qualificação de psicanálise e do psicanalista é bem precária – não é preciso fazer faculdade, não precisa fazer nada, basta fazer um curso e passa a ser psicanalista. A gente vai colocar, mas está bem arriscado você cair em malha fina por causa disso.
“Basta fazer um curso, não precisa fazer nada”? Não, na formação do psicanalista, isso não basta. Nem para nenhuma outra profissão cuja toda formação/atualização deveria ser permanente. Todavia, a psicanálise “caiu nas graças” do mercado e do capital: o que está sendo vendido por aí, cursos ou graduação em psicanálise e a psicanálise em si, sim, já está na declaração do IR. Se não podemos mais lutar contra isso, o que fazer?
Quando alguns de nós começou a praticar não havia campo – nem o lacaniano – no Imposto de Renda para declarar as sessões recebidas. Muitos pagamentos, ou quase a sua totalidade, eram feitos em espécie. Ora, fazer isso não era por capricho ou para enganar o fisco. Nós sabemos da potência do pagamento no manejo clínico, algo que enlaça o tempo (impermanência, transitoriedade) e a perda de gozo (há que se pagar com uma libra de carne para arriscar perdê-lo).
Sabemos que Freud, no início da sua clínica, ganhava pouco, tinha poucos analisandos, logo, bastante tempo para escrever seus casos clínicos detalhadamente. Ainda bem. Lacan, como médico, aprendeu bastante sobre a loucura e a personalidade paranoica. Ninguém “vivia” da psicanálise. Será isso que faz hoje com que cada um que “se tornou psicanalista” – todos já “formados” e muito sabidos – queira transmiti-la por um determinado valor em cursos on-line?
Jovens analistas outrora suportavam o trabalho CLT nos serviços públicos por serem fontes de grande aprendizado, não por pagarem muito. Com os psicóticos aprendíamos sobre o inconsciente a céu aberto; com os portadores do TGD sobre a criança e a subjetividade. Paramos de querer “roer o osso” para transmitirmos um saber “pré-digerido”, ensinar algo do aprendido sobre Freud e Lacan para outros que iniciam sua jornada?
Assim, proliferaram os cursos sobre psicanálise, muitos falando de tudo, um deles com 110 mil inscritos. Na sua página do Instagram, felizmente, diz apenas: “Instituição de ensino superior dedicada ao ensino e à pesquisa da Psicanálise no Brasil.” Não menciona formação, ainda bem.
Nele, vemos circular pessoas bem bacanas de diversas escolas, inclusive da nossa. Pode? Penso que sim. Melhor tê-los entre outros para que possam, nas suas aulas, transmitir a importância de uma comunidade de psicanalistas que cuidam da sua formação permanente; para que “não durmam no conforto das suas poltronas”; e para a importância de tratar os inúmeros desafios que enfrentamos cotidianamente, através das suas análises e supervisões pontuais e/ou regulares.
Se a psicanálise no século passado era rechaçada por alguns, se ela gerou escolas com diversas orientações, penso ser salutar escutar algumas orientações do mestre fundador para que elas possam funcionar como balizas na nossa postura diante dos desafios que temos que enfrentar hoje, que são muito maiores do que a formação do psicanalista.
Cito-os para que não esqueçamos: racismo estrutural, ódio à diversidade, aquecimento global, hipermedicalização, abandono do mundo e de uma maior vivência entre outros para se afundar nas múltiplas ofertas daquilo que é considerado smart (os phones), deixando os humanos dumbs ou zumbis.
Qual orientação Freud nos deixou?
Abstive-me de polêmicas e influenciei na mesma direção meus seguidores, quando estes pouco a pouco surgiram. Esse procedimento foi correto. A proscrição que pesava na psicanálise naqueles dias tem sido suspensa desde então. (…) Não devem esperar, no entanto, ouvir a boa notícia de que a luta contra a psicanálise terminou, e que esta, afinal, foi reconhecida como ciência e aceita como tema de ensino nas universidades. Não é nada disso. A luta continua, se bem que sob formas mais educadas. O que também é novo é o fato de se haver formado uma espécie de crosta isolante, na sociedade científica, entre a análise e seus adversários. (FREUD, 1969, pp. 169-70, grifos meus)
Essa “crosta” era formada de pessoas que admitiam certas partes da análise, por simpatias pessoais, e rejeitavam outras, como sexualidade, inconsciente, por distintas leituras. Essas polêmicas insistem e persistem, inevitavelmente, com consequências. A comunidade de psicanalistas aumentou e a dos lacanianos também. No entanto, nem todos seguiram a via para a Escola criada por Lacan. Seus desvios seguem e equívocos quanto ao gradus e a garantia também. “A luta continua”, mas nem sempre de forma educada hoje em dia.
Vejamos o que Lacan já disse:
Eis, portanto, alguns de nós, reunidos na mesma lata de lixo, graças ao que é esse ofício. Poderíamos estar em companhia mais desagradável. Na verdade, como aqueles com quem me encontro reunido são apenas pessoas cujo trabalho tenho o máximo apreço, eu não poderia estar mal. (LACAN, 2008, p. 11)
Enquanto alguns, após a morte de Freud, esperavam regras para um “tratamento padrão”, Lacan oferecia princípios éticos e leis de ambiguidade lógica e discursiva, (LACAN, 1998) num campo, este nosso, onde “nenhuma harmonia, como quer que tenhamos de designá-la, é admissível. Daí impor-se a nós, seguramente, a interrogação sobre o discurso que convém a esse campo.” (LACAN, 2008, Ibid. p. 12).
A polêmica hoje que devemos enfrentar é, a meu ver, como acolher bem aqueles que querem ser psicanalistas independentemente de onde se graduaram. Para estes e para nós, uma esperança para encerrar este texto até nos encontrarmos em Maceió: que o nosso campo lacaniano, que nunca foi um lugar ideal e sem furos, seja um lugar de interrogar o desejo e cuidar, de forma amorosa e não invejosa, da formação permanente dos psicanalistas, com uma “fraternidade discreta” (LACAN, 1948, p126), ou seja, com respeito à inexorável diferença absoluta.
Referências
FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Vol. 22. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Trabalho original publicado em 1932-1936)
LACAN, Jacques. (1998). Agressividade em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1948)
LACAN, Jacques. (2008) O Seminário 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1968-1969)
