Nosso discurso não se sustentaria se o saber exigisse a intermediação do ensino. Daí o interesse do antagonismo que enfatizo aqui entre o ensino e o saber […] O que me salva do ensino é o ato. (Lacan, [Alocução sobre o ensino, 1970], O.E., 2003, p.308-310)
Eis então o que obtenho após haver proposto esta experiência. Obtenho algo que não é absolutamente da ordem do discurso do mestre, e ainda menos do magister. Eu nunca falei de formação analítica, falei de formações do inconsciente. Não há formação do analista. Da análise tira-se uma experiência, que se qualifica muito erroneamente de didática. A experiência não é didática. Por que vocês pensam que tentei apagar inteiramente esse termo de didática e falei de psicanálise pura? (Lacan, Jacques. Sobre a experiência do passe. 3/11/ 1973)
A descoberta do inconsciente e a inauguração de um novo campo do saber por Freud implicam uma interrogação sobre sua transmissão e propagação. Como se forma, como se habilita, como se orienta, então, um analista? A resposta freudiana, bastante conhecida por nós, apoia-se no tripé análise pessoal, estudo teórico e supervisão.
Coube a Lacan radicalizar essa posição, criticando as nefastas intenções (con)formativas da posição de mestre: “Eu nunca falei de formação analítica, falei de formações do inconsciente” (Lacan, 1973). Sua aposta na formação é sustentada pela manutenção do dizer de Freud sobre o real (O.E., 2003, p. 453). Furo fundamental ao redor do qual construiu sua Escola, que se apoia nos dispositivos do cartel de do passe.
Em nossa época, encontramos diversas ofertas em nome da psicanálise, seja na internet, na universidade, em grupos de estudos e em coletivos de psicanalistas, que ampliam seu território para além dos consultórios privados, indo à periferia, entrando nas comunidades, ocupando as praças e dialogando com a saúde pública. Práticas que trazem suas contribuições singulares à questão da formação do psicanalista para uma Escola que não se fecha em si mesma, mas que se mantém advertida dos “desvios e concessões” que ameaçam a sega cortante da verdade freudiana (O.E., 2023, p. 235).
A impostura universitária da graduação em psicanálise, acompanhada da proliferação das promessas de instrução profissionalizante em sua virulência midiática, escamoteia a pergunta central sobre o que é um analista e sobre o real em jogo na sua formação. É através dessa formação que, contingencialmente, pode se dar a transmissão do intransmissível do desejo do psicanalista, como atesta o dispositivo do passe. Dessa maneira, faz-se urgente discutir, orientados pela ética da psicanálise e pelo ato analítico, qual a responsabilidade de nossa comunidade e de cada um que a compõe no que tange à formação do psicanalista.
Como pode nossa Escola “[…] garantir a relação do analista com a formação que ela dispensa” (O. E., p. 249), sem denegar os efeitos do racismo e das segregações? Como fazer valer a extimidade da psicanálise frente à subjetividade da nossa época, levando em consideração que “[…] a experiência prova que o discurso analítico, sempre ameaçado pelo recalque, pela tendência a se perder e a se fundir no discurso comum, está à mercê das contingências do ato analítico” (Carta da IF-EPFCL)?
Ao trabalho!
Referências
Carta da IF-EPFCL https://www.
LACAN, Jacques. Alocução sobre o ensino [1970]. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 309.
LACAN, Jacques. O Aturdito [1972]. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 453.
LACAN, Jacques. Ato de fundação [1971]. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 235.
LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola [1967]. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 249.
LACAN, Jacques. Sobre a experiência do passe. A respeito da experiência do passe e de sua transmissão. (1973). Tradução: Ana Lúcia Teixeira Ribeiro. In: Documentos para uma Escola II. Lacan e o passe. Letra Freudiana – Escola Psicanálise e transmissão. 1995, Ano XIV, N. 0.