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Prelúdio 18 – Mariangela Bazbuz
O que perdura de perda pura?

“Do que perdura de perda pura ao que só aposta do pai ao pior”. A frase de Lacan finalizando o texto de Televisão nos parece oportuna para tratar de “Enlaces e desenlaces”, servindo de base para um pequeno recorte do que se passa numa análise.

Um vivente busca uma análise porque algo do real o tocou, seja algo contingente ou um sintoma que insiste no corpo, nos pensamentos, na vida. Ele chega numa posição de questionamento, acreditando que o sintoma seja capaz de dizer algo que precisa decifrar. A demanda surge desse alguém que sofrendo de sua falta-a-ser, da dor de existir, supõe um saber ao Outro, e se aventura na busca da sua verdade. Traz com o sintoma, ao mesmo tempo algo que insiste em se escrever (repetição), mas embutido nele o objeto causa da ex-sistência maldita que insiste em não se escrever.

Começa a falar e de significante em significante, vai enlaçando sua história, ao passo que o inconsciente “alíngua” se manifesta enquanto o sujeito tropeça nos lapsos, atos falhos, nos sonhos, na repetição trazendo à tona o vazio. Seus ditos constituem a “hystoricização”, e apresentam-se com valor de verdade, ainda que meio-dita, carecendo de uma interpretação que lhe extraia um dizer, denuncie um saber. Saber este, que se extrai do próprio sujeito, nos diz Lacan, não é suposto, nem será descoberto e sim inventado, saber caduco, migalha de saber, que só se pode postular a partir do gozo do sujeito. Só é possível ouvi-lo se deixar em suspenso a imaginação e puser a contribuir o simbólico e o real que o imaginário une.

Em RSI, com o nó borromeano, Lacan vai dizer que é preciso que o real sobreponha o simbólico para que o nó seja realizado, mas não no sentido imaginário de que devesse dominar, mas simplesmente que eles se atam de outra forma. Dizendo isso, retoma o Complexo de Édipo de Freud para afirmar que não é ele que se deve rejeitar porque “sem ele nada da maneira como ele se atém à corda do simbólico, do Imaginário e do Real se sustenta”. Estando ele implícito no enodamento, faz o essencial que é precisamente, operar a própria análise, entrando na fineza dos campos de ex-sistência.

Ilustrando a amarração dos três registros, o nó borromeano apresenta a angústia entre real e imaginário, transbordamento do real sobre o imaginário, fora do simbólico como o real, e o objeto a, causa de desejo e angústia, aparece no centro do nó, como vazio central. A angústia situada aí, não só em relação ao objeto e ao desejo, mas angústia como “acontecimento do real”, mostrando que “o sintoma vem do real”.

Soler nos adverte que o real se manifesta como rejeição do “inconsciente tagarela”, mas não há o que escolher entre o inconsciente-verdade e inconsciente real, já que só há análise com hystoricização do sujeito. Conjugando sincronia e diacronia, real e verdade estão enodados, e se é impossível ele se desligar por completo da verdade, opera como fim, seja de uma sessão ou do processo de uma análise, funcionando como ponto de parada da verdade mentirosa, queda de sentido.

Justamente aí a função do analista comparece, com seu ato, cortes, escansões, facilitando essas lacunas, não atendendo às demandas do analisante. Só existe analista se ele mesmo tiver circunscrito a causa do seu próprio horror de saber, e apresentando as marcas de um desejo inédito, estiver bem avisado de ser apenas um rebotalho da humanidade.

Lacan, no Seminário …Ou pior, lança mão da frase “Peço-te que me recuses o que te ofereço, porque não é isso”, para lembrar que o que motiva uma demanda é precisamente aquilo que não se pode falar, o que representa pelo objeto a. Marca que é justamente esse “não é isso” que está num lugar dominante e enfrentamos o tempo todo na vida, jamais vendo o seu fim. Embora a princípio pareça um paradoxo, é justamente esse “não é isso” que o analista precisará ratificar com sua presença.

A ética da psicanálise está para além da permissividade do puro gozo ou da acomodação na insatisfação. O que se espera de uma análise é que produza o incurável. Ao deparar-se com a castração, não cedendo de seu desejo, cada um faça seu rito de passagem. Ultrapassando o fantasma, separando-se daquilo que o prende ao Outro, inaugure uma satisfação outra. Identificar-se ao seu sintoma letra é justamente isso: inventar uma “fixação”, que o satis-faça.

O caminhar na análise, ouso dizer, seria partir de “o que o Outro quer de mim”, “quem sou eu no meu desejo”, passar pelo “eu sou um sujeito castrado”, dissociando o a de A, para no final com a destituição subjetiva, ultrapassando o impasse da falta, chegar a “eu sou um objeto” e mais ainda, como derradeiro “o que posso fazer com isso que sou”.

Experiência trágica mesmo essa, visto que o pior colocado em posição de causa, produz a operação, onde se ratifica a perda, reitera-se a castração, atualiza-se o objeto a perdido, cria também aprópria solução e o resto, que é o mais precioso do ser. “O que perdura de perda pura ao que só aposta do pai ao pior” nos aponta que a perda pura causa o que pode ser feito de melhor para contornar o pior.

O pior do humano é transformar o “mal-dito” num “bem-dizer”, já que o acesso à condição humana se faz radicalmente, com a perda de ser que a passagem pelo Outro provoca. A falta essencial na origem do sujeito, é que o permite ser UM, conjunto vazio, ao qual se enlaça o signo do Outro, mas marcado pela singularidade.

Como escreveu Dominique Fingermann numa dedicatória, “Vamos lembrar então: para passar do Pire ao dire, é só uma pirueta!”

Referências Bibliográficas

– FINGERMANN, D; DIAS, M. Por causa do Pior. São Paulo: Iluminuras , 2015.

– LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …Ou pior. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2012.

– _______. (1972-1973). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

– _______. (1974). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

– _______. (1974). Nota Italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.

– _______. (1974-1975). O Seminário, livro 22: RSI. Inédito

– Seminário: A Práxis Analítica- Enlaces e Desenlaces. Márcia de Assis. FCL-Niterói.

– Soler, C. Declinações da Angústia. São Paulo: Escuta, 2012.

– ______. O Inconsciente Reinventado. Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2012.

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