Prelúdio 09 – Maria Luisa Rodriguez
“O empuxo à criação na clinica da psicose”
Desde a convocação lacaniana de não recuar diante da psicose, com a teorização sobre a Metáfora Paterna e sua função no estabelecimento da norma fálica, até a elaboração do conceito de sinthoma, constituiu-se uma comunidade analítica lacaniana com uma considerável experiência da clinica da psicose. Acumulamos uma importante discussão do que vem a ser o sujeito na psicose e formulamos a questão da transferência e do manejo no seu tratamento possível, onde o analista deve se posicionar não pela via da interpretação, mas como testemunha, secretário ou garantia do que lhe é endereçado.
A expressão secretário do alienado, utilizada por Lacan para referir-se à posição do analista diante da psicose, foi usada inicialmente por Jean-Pierre Falret, justamente para criticar as práticas descritivas da psiquiatria de sua época e para propor a importância de dar voz aos pacientes. Mais tarde foi retomada por Lacan, que ressaltará a necessidade de que o analista se deixe ensinar pelo analisante, acolhendo a sua produção e abstendo-se de interpretações na clínica da psicose.
Tomar a psicose a partir dessas premissas significa avançar na trilha aberta por Freud, em sua posição ética que situa a psicose, não a partir de seus déficits e de sua desordem, mas reconhecendo-a como uma ordem. Freud indica que o sujeito deve ser buscado na sua produção psicótica e na análise do caso Schreber demonstra que o que o sujeito reinterpreta no seu delírio é o Outro. É essa reinterpretação do Outro que dá a ele, Schreber, o lugar de sujeito.
Colette Soler, em seu livro A Psicanálise na Civilização, propõe a ocorrência de um empuxo à criação na psicose, devido à não inscrição do Nome-do-Pai, considerando que, se por um lado, essa não inscrição pode produzir efeitos desorganizadores que se manifestam nos fenômenos de perda da realidade, de passagens ao ato, e outros, também pode, por outro lado, funcionar como um starter para produções inéditas (SOLER, 1998).
Aqui temos uma importante indicação no que diz respeito ao tratamento da psicose. Sem dúvida, observamos esse empuxo à criação na trajetória dos grandes criadores, artistas e cientistas que sofrem da estrutura psicótica, como Joyce ou Rousseau; ou mesmo de sujeitos que estruturam um delírio monumental, como é o caso do Presidente Schreber. Mas esse empuxo à criação também se apresenta no dia a dia da clínica, guardadas as devidas proporções, na produção de ideias delirantes que tentam ordenar o gozo do Outro sem barra. Isto porque o “empuxo à criação” é um traço da estrutura psicótica, efeito da ausência da norma fálica, que pode ser observado nas construções delirantes desses sujeitos, no cotidiano da clinica.
Se o psicótico encontra um lugar de endereçamento de sua produção delirante poderá construir uma alternativa para a foraclusão através de uma criação delirante inédita, que faça suplência ao Nome-do-Pai ausente na estrutura. Isso pode ocorrer sem que o sujeito esteja em análise, como é o caso do Presidente Schreber ou de Joyce. Pode ocorrer sempre que se constitua um lugar de endereçamento. Na clinica, a presença do analista deve garantir o espaço de endereçamento, se o analista se deixa ensinar pela experiência radical da psicose, recolhendo sua produção simbólica.
Sabemos que nos dias de hoje, a neurociência avança de forma muito potente, aliada aos interesses da acumulação de capital da indústria química, propondo a medicalização generalizada como forma de tratamento do mal estar na psicose. Uma intervenção que amenize a invasão alucinatória delirante pode ser muito eficiente para criar a possibilidade de uma existência menos avassalada pelo Outro, mas jamais tomará o lugar que cabe ao sujeito de buscar a maneira especifica pela qual encontrará a sua estabilização. Para isso é preciso o desejo decidido do analista que sustente a aposta na clinica da psicose e propicie, ao sujeito psicótico, esse lugar de trabalho e produção.
Bibliografia
BERCHERIE,P. Os fundamentos da clinica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989
FREUD, Sigmund. (1919) “Nuevos caminos de la terapia psicoanalitica” . Em: Obras Completas, vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1996.
LACAN, J. (1956) “O Seminário, livro III: As Psicoses” . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, (1985)
________. (1958) “De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996
QUINET, Antonio. (Org.) Psicanalise e Psiquiatria. Controvérsias e convergencias. Rio de Janeiro: Rios Amb