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Prelúdio 14 – Roseli Maria Rodella de Oliveira
“A responsabilidade do psicanalista com as crianças no campo social”

Lendo Hannah Arendt (2004) para apreender suas considerações sobre o conceito de segregação me deparo com outro tema que a autora desenvolve – a responsabilidade. Este tema me leva a pensá-lo sob a ótica da psicanálise com crianças e sobre os problemas cruciais de nosso tempo, sobre a responsabilidade do campo social aos quais as crianças estão concernidas.

Comumente os psicanalistas lacanianos abordam o tema da responsabilidade quando falam do início de uma análise. Lacan (1951/1998) nos mostrou que na análise produz-se uma retificação subjetiva, indicando a participação do sujeito na desordem da qual ele se queixa, conforme pontuou a partir do caso Dora. O analisante, levado a reposicionar-se diante de suas queixas, quando caem seus álibis imaginários, já não pode mais culpar o outro, pois não se trata mais do desconhecimento de sua posição diante do que vem se queixar, demonstrando sua responsabilidade e resgatando o lugar de sujeito desejante.

Quando Hannah Arendt (1999) trata do que chamou de banalidade do mal comenta sobre a recusa das pessoas comuns em assumir a responsabilidade no que resultou na crueldade institucionalizada durante o extermínio na segunda guerra. Sua constatação é que a crueldade não é excepcional, é atual, está entre nós e, às vezes, torna-se tão natural, como se a ela devêssemos nos conformar. Em Responsabilidade e Julgamento (2004), a autora demonstra a incapacidade das pessoas comuns de pensar e julgar por conta própria, além de não assumir responsabilidades políticas e pessoais pelas próprias ações.

No capítulo sobre o Little Rock, a autora faz uma reflexão a partir de uma fotografia de jornal onde uma menina negra saindo de uma escola é “perseguida por uma turba de crianças brancas” (2004, p. 261). Sobre esta foto Arendt revela a situação que afetou as crianças pela ordem da decisão da Suprema Corte Americana que pretendeu resolver a questão da segregação dos negros nos estados sulistas através de uma lei que obrigava que elas poderiam frequentar as mesmas escolas públicas que os brancos. Ela demonstra que essa decisão provocou o deslocamento da “responsabilidade dos ombros dos adultos para o das crianças [… e que] há todo um empreendimento, uma implicação de tentar evitar a questão real” (p. 262), afirmando ainda que não se pode esperar que as crianças saibam lidar com esses problemas e que não deveriam ser colocadas no centro dessa batalha política.

De forma semelhante, hoje, fazemos o mesmo com nossas crianças e adolescentes ao transferir algumas responsabilidades da sociedade e, portanto, dos adultos para eles. Como exemplo, cito a ideia bastante divulgada na mídia brasileira da tentativa de resolver os problemas da violência social através da redução da maioridade penal. Ou quando a vítima de abuso sexual, menor de idade, é responsabilizada socialmente como provocadora do ato violento a que foi submetida. Ainda me vem à mente a recente lei que determina a inclusão das crianças com necessidades educativas especiais em escolas despreparadas para acolhê-las, empurrando para as crianças a dificuldade do campo social em conviver com as diferenças, podendo até recrudescer a segregação.

Transferem-se as responsabilidades do campo social, consequentemente dos adultos, para as crianças e adolescentes colocando-os como objeto de maus-tratos e negligências, apesar de termos uma das leis mais atuais sobre o cuidado com as crianças, o ECA. Julien (2000) também nos chama à responsabilidade sobre elas:

Se é verdade que toda criança nasce na fragilidade e no desamparo de não poder ‘se virar’ por si mesma, […] As pessoas à volta da criança têm, portanto, o dever de saber o que lhe falta para poder a isso responder sem demora (p. 24).

Pensar nos problemas cruciais para a psicanálise na atualidade me fez refletir também sobre a responsabilidade da psicanálise com crianças. Segundo Rouanet (2004) a psicanálise tem “instrumentos teóricos para pensar as formas contemporâneas assumidas pelo mal-estar na civilização”, o que dá a ela uma responsabilidade intransferível.

Desde que Freud chamou a atenção para lapsos e atos falhos – esses acontecimentos da vida cotidiana –, nós, psicanalistas, passamos a prestar atenção em detalhes que parecem triviais, estranhos, seja no discurso ou em nosso entorno. Ele nos mostrou que os detalhes, aparentemente sem importância, no campo do inconsciente têm uma importância essencial. A psicanálise tem a responsabilidade do desvelamento do trivial, ela pode ir além do explícito no discurso porque ela tem ferramentas para isso, desvelando esses mecanismos de transformação, no campo social, do essencial no trivial.

Assim concluo: qual o lugar que a criança ocupa no “mal-estar” da civilização atual? Quais são os problemas cruciais de nossa época para os psicanalistas que se ocupam de crianças que estão adormecidos, apagados, velados?

REFERÊNCIAS

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ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras.1999

_______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

JULIEN, F. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

ROUANET, P. S. (2004). Dupla utopia psicanalítica. Percurso, n. 33, 2º semestre, Disponível em: http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs33/33Entrev.htm, acesso em 22/07/2016.

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