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Prelúdio 19 – Elyne Barros Lima
“Luz, camera, ação!”

Em 2006, no Fórum Fortaleza, criamos a atividade “Cinema e Psicanálise”. Naquela época, Lia Silveira e eu ficamos responsáveis por coordenar essa atividade que nos encantava muito e serviu para aproximar muita gente do Fórum e também nos aproximar da comunidade de uma forma geral. Mas não somente para isso. Serviu para conversarmos com outras pessoas e outros saberes e para mim, particularmente, uma oportunidade de ampliar os horizontes. O cinema tem essa beleza.

Bem, naquele ano, exibimos o filme O Espelho, do cineasta russo Andrei Tarkovski, e para tornar a discussão mais interessante, Lia me encaminhou uma cópia em francês do livro dele, Esculpir o tempo. Na época traduzi um capítulo, O tempo impresso, ou na minha tradução, Fixar o tempo, que me pareceu dizer mais das ideias de Tarkovski sobre o tempo e o cinema, e também, claro, sobre o tempo e a psicanálise.

Não lembro o que discutimos naquele dia, mas a leitura do trecho do livro do cineasta me impressionou profundamente, sobretudo pelas aproximações que essa concepção sobre o tempo guarda em relação àquela da psicanálise. Relendo o livro, publicado em português um pouco depois, destaquei algumas dessas aproximações. Segue agora um pequeno trailer sobre elas:

Trailer:

Para Tarkovski o grande diferencial do cinema – o que o distingue das outras artes, como a literatura e o teatro – é a capacidade de se “registrar uma impressão do tempo”[i]. Não só isso, mas “a possibilidade de reproduzir na tela esse tempo, e de fazê-lo quantas vezes se desejasse…” Ele diz ainda que “o tempo registrado em suas formas e manifestações reais, é esta a suprema concepção do cinema enquanto arte.” O diretor problematiza dizendo que se tem usado o cinema como reprodutor de outras artes, como a literatura e o teatro. Porém, para ele, isso retira o potencial do cinema que é “imprimir em celuloide a realidade do tempo”[ii]. Diz ainda que “o que leva as pessoas ao cinema é o tempo: o tempo perdido ou ainda não encontrado”[iii]. Se pararmos para pensar um pouco, muitas das queixas que escutamos ao receber os pacientes no fundo tratam disso, de “um tempo perdido”. Tempo perdido com a força inibidora da neurose que fixa o sujeito num mesmo tempo e que se repete de outras formas, com outros personagens. Mas, no entanto, é o mesmo clichê. E é comum ouvirmos: “Quero sair dessa”. “Não aguento mais! É sempre a mesma história! Você pode me ajudar? ”

Tarkovski em seu livro se pergunta então em que se constitui a tarefa de um diretor. Qual sua essência? E responde: “esculpir o tempo”. Ele deve pegar o “bloco de tempo” constituído por muitos fatos, cortar e rejeitar tudo aquilo que não necessita e reter apenas o que será o elemento de um futuro filme. Nesse ponto, qualquer semelhança não é mera coincidência, pois Freud[iv] já dizia que a psicanálise, assim como a escultura, “funciona per la via di levare pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida”. Revelar o inconsciente é tarefa árdua! Lidar com as resistências é como trabalhar esculpindo pedra, um trabalho artístico feito no um a um.

Assim, Lacan nos lembra com Freud que o artista em sua matéria sempre precede o psicanalista[v], e Tarkovski, podemos dizer assim “freudiano”, valendo-se também do tradicional gênero da poesia japonesa, o haicai[vi] (tal como Eisenstein observou), percebeu que a combinação de três elementos separados – princípio que está na base desse gênero – é capaz de criar algo novo, diferente de cada um dos versos. E transpôs isso para o cinema, porém com uma diferença: ao contrário da prosa e da poesia, que fazem uso das palavras, o cinema parte da observação direta da vida. A observação direta não quer dizer reprodução direta, segundo Tarkovski, mas o que vai compor o filme é aquilo que se justifica como essencial à imagem. Para nós, psicanalistas, o que interessa também não é a sucessão dos acontecimentos, a cronologia dos fatos, esse não é o ponto mais importante. Freud já tinha se dado conta disso havia muito tempo quando escreveu a Fliess em carta de 21 de setembro de 1897[vii] dizendo que não acreditava mais na sua neurótica, dando assim um passo em direção à construção da fantasia. Freud, e depois Lacan, fazem um percurso que vai do mito à ficção e depois à fixão, neologismo inventado por Lacan[viii] para falar desse ponto irredutível, do impossível que fixa o sujeito pela estrutura de linguagem, operando uma redução das ficções do seu romance familiar.

Tarkovski termina esse capítulo dizendo que “o cinema deve ser o meio de explorar os problemas mais complexos de nosso tempo”[ix]. A direção para isso está, segundo ele, em sermos capazes de apreender com a mais segura precisão qual a especificidade do cinema[x] e, quem sabe assim, encontrar a chave que nos abra as portas. Será que não podemos também, tomando o exemplo de Tarkovski, usar como chave para os problemas cruciais da psicanálise, nos atermos à especificidade de sua ética e estarmos à altura daquilo a que esse tempo nos convoca? Penso que a recomendação de Lacan “estar na hora de Freud” (estilo) esaber “desmontar o relógio”[xi] (savoir y faire) é atualíssima.

The end

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[i] Tarkovski, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pág. 71

[ii] Idem, pág. 71

[iii] Idem, pág.72

[iv] Freud, S. Sobre a Psicoterapia. In: S. Freud. Edição standard brasileira das psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol.11, pág. 67-142.

[v] Lacan, J. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003, pág. 198 à 205

[vi] Exemplos de haicai citados por Eisenstein in: Tarkovski, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pág. 76: A lua brilha fria;/Perto do velho mosteiro/Um lobo uiva.

[vii] Freud, S. Carta 69. In: S. Freud. Edição standard brasileira das psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 1

[viii] Lacan, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003, pág. 480

[ix] Op. cit, pág. 94

[x] Grifo meu

[xi] Lacan, J. A direção da cura e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003.

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