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Prelúdio 24 – Rosane Melo
“Prelúdio 24”

Um dos problemas cruciais hoje na clínica com crianças é o fenômeno de patologização e da medicalização da infância, à medida que tudo que foge à normalidade roteirizada passou a ser tratado como doença a ser medicada. Acompanhamos um processo de biologização do cotidiano a partir do discurso da biociência e de pretensão de um controle cada vez maior da vida, acompanhado de um discurso que incentiva a medicalização da sociedade em geral e, em particular, do campo educacional. Em “Ciência e verdade”, Lacan já nos advertia das consequências das tentativas da ciência, em nome da verdade, recobrir tudo com o simbólico. A ciência foraclui a verdade, foraclui a verdade do desejo e da fantasia na constituição do sujeito assujeitando-o aos seus métodos. Verificamos a convergência histórica de entidades nosológicas que provêm das avaliações médicas: a disritmia cerebral a dislexia, a lesão cerebral mínima, a disfunção cerebral mínima, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. No DSM5, a comorbidade mais frequente apontada para o TDAH é com o Transtorno de Oposição Desafiante (TOD), além do Transtorno Específico de Aprendizagem. Logo, legitima-se a medicalização das dificuldades de aprendizagem pela afirmação da comorbidade dos quadros.

O binômio infância e escola emerge na cultura ocidental atravessado pelo processo de racionalização e diferenciação institucional característico das sociedades modernas ocidentais e por uma concepção de desenvolvimentismo que edifica as perspectivas evolucionistas e normatizadoras dessa época. A cronologização do curso da vida traz implicações discursivas e tecnologias disciplinares fundamentadoras das práticas de cuidados e tutelares sobre a infância e a adolescência. A escola emerge nesse contexto como local privilegiado para preparar o futuro das novas gerações na conquista de estágios sucessivos de aperfeiçoamento pessoal, pois os atributos infantis espelham o não adulto: irracional, vulnerável, imaturo e dependente. É interessante observar que toda essa epidemia divulgada e exponencialmente multiplicada de transtornos, que inclui as chamadas “doenças do não aprender”, ou seja, os “transtornos de aprendizagem”, ocorre quando a avaliação da qualidade das escolas pública e privada atinge seus piores níveis no nosso país[2]. Tratar o TDAH e as dificuldades de aprendizagem com psicotrópicos que têm numerosas e graves reações adversas é desconsiderar as inúmeras pesquisas que indicam a necessidade de mais estudos para o uso de tais medicamentos, que por sua vez têm o mesmo mecanismo de ação que as anfetaminas e a cocaína: poderosos estimulantes do sistema nervoso central que aumentam a atenção e a produtividade, enfim o desempenho de funções executivas que auxiliam na realização de tarefas escolares e acadêmicas, além de diminuir a fadiga.

O uso do metilfenidato, por ser um estimulante derivado da anfetamina, tem sido utilizado por estudantes, profissionais e pesquisadores com o objetivo de se manter mais tempo acordados e concentrados na tarefa a ser realizada. O tema ganhou maiores proporções no meio acadêmico, a partir dos artigos publicados em 2008 pela Revista Nature sobre o uso do metilfenidato para melhoria do desempenho profissional. Escândalo por quê? Ora, sabe-se da existência de anfetaminas de uso não-médico, sintetizadas em laboratórios clandestinos, conhecidas como ecstasy, ice e crystal . Alguns neurologistas e psiquiatras disseminaram que o metilfenidato funciona como amplificador cognitivo, ou seja, afirmam que a droga aumenta a capacidade de aprendizagem e concentração. Outros advertem que é mais um dopping intelectual, pois o sujeito fica focado demais em uma única atividade. O uso recreativo do metilfenidato decerto que aumenta a procura pela droga. Muitos usuários acabam suspendendo por conta própria a ingestão das drogas por se sentirem como zumbis, os zombie-like.

A psicanálise mantém nesse contexto um questionamento ético e político, ao preconizar um tratamento que leve em conta o sofrimento psíquico de um sujeito criança ou adolescente, sua história, seus laços sociais dentro e fora da escola, quer dizer, um tratamento que inclui seu sintoma em seu processo de escolarização. Hiperatividade, desatenção, não-aprendizagem podem ser sintomas e como tais expressam uma angústia que assinala o que há de mais particular do sujeito dentro dos laços sociais. Não podemos nos esquecer de que na modernidade, lançadas às vitrines, a infância e a adolescência tornaram-se alvo da cultura do consumo, inclusive de remédios.

A medicalização da infância e da adolescência pode ser interpretada como mais uma modalidade discursiva de elisão do desejo e foraclusão do sujeito na cidade dos discursos. A infância e a adolescência roteirizadas e ficcionadas encontram-se fixadas no Outro do discurso dentro de uma sociedade hiperativa. Nesse caminho, há um empuxo à intervenção imediata, sem levar em conta o tempo para compreender, uma espécie de impulsividade diagnóstica. O discurso do analista, por ser aquele que reinstaura o lugar do sujeito, pode instaurar a política da falta – falta-a-ser; falta-a-saber; falta-de-saber – para contrapor esses discursos que pretendem assegurar a onipotência do Outro. A psicanálise ao interpretar os discursos vigentes interroga o status regulamentador de um dado discurso e suas formas de tratamento dos desvios e das anomalias. Cabe na conexão psicanálise e educação interrogar o quanto o saber pedagógico se alia às leis do mercado que a ciência moderna sustenta ao contribuir para fabricação dos fármacos, para a proliferação das doenças e de doentes. Ademais, podemos apostar no retorno do que vetorializa toda e qualquer concepção de escola, qual seja uma referência à elaboração do saber, um saber-não-todo, colocando em cena o sujeito e o que se transmite.

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[1] O presente texto trata de reflexões oriundas das minhas incursões pelo campo da educação, algumas já indicadas em textos como o artigo publicado na revista Marraio intitulado “O avesso do ato na psicologia das massas e no discurso capitalista: reflexões sobre a medicalização da infância” (MELO, 2012), e um capítulo do livro pela Rede de pesquisa Psicanálise e Infância do FCL-SP, cujo título é o mesmo do presente prelúdio.

[2]O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), de 2013 mostrava um IDEB nacional de 5,2, enquanto em 2011 havia sido de 5,0 (Ver também http://www.inep.gov.br). Em 2015, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulga um dos mais completos rankings globais de qualidade de educação. Nele, o Brasil aparece apenas em 60º lugar entre 76 países estudados.

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