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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio III
O ESPETÁCULO DOS CORPOS (DES)AFETADOS NA ERA DA INFÂNCIA GENERALIZADA
Ana Laura Prates

Com a aliança cada vez mais estreita entre a Ciência e o Capitalismo, a noção de corpo próprio passou a ocupar um lugar central e qualquer ameaça ao corpo se reveste de uma importância sem precedentes. A nova norma social impõe o respeito prioritário à integridade física, que é ameaçada pela idade e pela doença. Assim, tratar do corpo é protegê-lo da violência através da ordem pública, é também protegê-lo das doenças através da ordem médica: o médico ganha novo prestígio e a saúde passa a ser uma preocupação constante. O hospital muda de estatuto tornando-se o verdadeiro templo da medicina, e, pela primeira vez na história da humanidade, as pessoas nascem e morrem no hospital.

No século XX podemos afirmar que à crescente preocupação com a higiene e os cuidados corporais que surgiram após a Segunda Guerra Mundial, uniu-se o sentimento de que cuidar do corpo é uma obrigação. A permissividade conquistada com aparente queda dos valores morais e religiosos nos anos sessenta e setenta tornou-se rapidamente um dever, o que pode ser facilmente constatado a partir da crescente procura por academias de ginástica e cirurgias plásticas. Com efeito, cada vez mais a aparência corporal é valorizada; o corpo deve ser exibido, surge uma satisfação narcísica em relação ao “corpo perfeito” que é tomado como um ideal. Assim, o corpo torna-se quase idêntico ao indivíduo, ocupando o lugar que ocupara a razão no século XVII. Na lógica contemporânea sentir vergonha do corpo é sentir vergonha de si mesmo, não cuidar do corpo é não cuidar de si.

No Capitalismo de consumo, entretanto, o próprio corpo torna-se objeto e sua imagem é reduzida à mercadoria. Essa lógica foi descrita em 1967 por Guy Debort e chamada de sociedade do espetáculo. Cuidar do corpo, nesse cenário, corresponde a prepará-lo para ser mostrado, exposto à visão de todos. Em relação à imagem do eu, Debord afirma: O espetáculo que é o apagamento dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu que a presença-ausência do mundo assedia, é também a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda verdade vivida, diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência. (…) O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no cerne dessa pseudorresposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é esse desejo infantil, condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental (p. 141). Lembremos, entretanto, que para Lacan o objeto enquanto condensador de gozo é justamente aquilo que, para além da imagem, é despojado do corpo. E ele aponta em “Alocuções sobre as psicoses da criança” (1968) quais são, a partir dessa definição, os impasses dos problemas levantados na época: Problemas do direito de nascimento, por um lado, mas também, no impulso do ‘teu corpo é teu’, no qual se vulgarizou no início do século um adágio do liberalismo, a questão de saber se, em virtude da ignorância em que é mantido esse corpo pelo sujeito da ciência, chegaremos a ter o direito de desmembrá-lo para troca. E ele conclui: Haveremos de destacar pelo termo criança generalizada a consequência disso? (p. 367).

Ora, a preocupação próxima à paranoia dirigida à pedofilia na sociedade contemporânea surge como a face Unheimlichdo “dispositivo de infantilidade” descrito pela historiadora Sandra Corazza. Alguns sociólogos já têm chamado de “pedofilização” esse funcionamento de nossa sociedade que, em um só tempo, expõe a criança como mercadoria na sociedade do espetáculo e escandaliza-se de modo inédito, nada querendo saber sobre o desejo infantil e/ou o desejo pelo infantil. Como aponta o trabalho de James, Jenks e Prout (1999), se é verdade que: o maltrato infantil não é um fato original: não houve jamais um período histórico ou uma sociedade em particular em que os corpos das crianças não fossem explorados, sexualmente molestados e submetidos a violência física e psicológica (p. 217); por outro lado: Pareceria haver um renascer do interesse na pureza corporal, sendo o corpo da criança visto como o autêntico templo do sagrado. Os corpos das crianças devem ser preservados a qualquer custo, e toda violação implica um ato de transgressão de dimensões quase inimagináveis. (p. 215).

Não parece um paradoxo esse interesse pela pureza corporal em tempos de oferta de corpos no espetáculo da ciência? E não poderíamos chamar nossa redução a corpos/organismos/objetos a serviço do discurso da ciência do capitalismo como uma “pedofilia generalizada”? Nesse caso, parece essencial retomarmos a advertência de Lacan em “Alocução sobre as psicoses da criança” quanto ao risco de equivaler a criança ao objeto a. Pretensão que, segundo Lacan: só seria movida pela suspeita da existência do objeto a. Seria movida, justamente, por funcionar o objeto a como inanimado, pois é como causa que ele aparece na fantasia. (p. 366). Nesse contexto, somos convocados, enquanto psicanalistas, a voltarmos aos “Três ensaios para uma teoria sexual” (Freud, 1905) para retomar a localização topológica e lógica da sexualidade infantil no mistério do corpo falante.

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