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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio IX
O CORPO ARTÍSTICO
Robson Mello

Em 2010 a cantora norte-americana Lady Gaga apareceu na revista japonesa Vogue Homme, fotografada por Terry Richardson, vestida com um biquíni de carne crua¹. No mesmo ano, durante a premiação do Video Music Awards, da MTV norte-americana, a mesma artista surgiu com um vestido feito inteiramente da mesma matéria-prima, criado por Franc Fernandez (Francisco Fernandez), estilista argentino radicado em Los Angeles. Atualmente, o vestido integra o acervo do Museu Rock and Roll Hall of Fame, em Ohio. Nas várias situações em que precisa ser transportada, a peça costuma exigir uma complexa logística para manter sua qualidade, sobretudo a umidade. A polêmica e as críticas foram inúmeras, vindas especialmente do PETA, sigla que significa “Pessoas a favor do Tratamento Ético aos Animais”. Em entrevista à apresentadora Ellen DeGeneres, ao ser questionada a respeito da chamada meat dress, Lady Gaga respondeu:

“Se não defendermos o que acreditamos e não lutarmos pelos nossos direitos, logo teremos tantos direitos quanto a carne que cobre os nossos ossos”. E arrematou: “eu não sou um pedaço de carne²”, explicando que a roupa não é ofensa, mas um modo de chamar a atenção para questões como o preconceito, por exemplo.

A artista, com esse ato, nos mostra que o corpo em seus múltiplos usos e abusos é um aparelho político. O corpo é um conceito que não se deixa ser totalmente apreendido, resultado do enlace entre Real, Simbólico e Imaginário, um recorte significante e imagético. Lacan (1975) nos diz que o corpo ganha seu peso pela via do olhar³. No final, o que se evidencia do corpo é tão somente o resultado de uma imagem invertida que se permite ser integrada sob os auspícios do olhar do Outro. O corpo não é o organismo e sem os investimentos libidinais vindos do Outro, restaria, tão somente, um naco de carne. O sujeito tem um corpo ou o corpo tem o sujeito? Lacan traz o conceito de falasser para esclarecer que o sujeito não é o corpo, ele é somente o que um significante representa para outro significante. É este o conceito que introduz o corpo, enoda o corpo (substancia gozante) ao sujeito.

A obra figurativa e modernista do artista anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992) nos mostra, com muita propriedade, a verdade sobre o corpo que não acedeu à trama erótica, bem antes do engodo da imagem. São muitos os corpos autorrefletidos no espelho com os quais o artista nos presenteia. Posto isto, temos de nos interrogar: qual é realmente a matéria que faz corpo? E logo obtemos a resposta: o corpo do sujeito é esculpido na/pela linguagem. Eis aí seu verdadeiro estofo. Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) e o profeta Gentileza (1917-1996) nos trazem, com suas obras, a prova cabal. Em O livro de cabeceira (1996), do diretor britânico Peter Greenaway, encontramos um dos destinos do corpo – se dar aos significantes vindos do Outro. Os artistas mineiros: Efigênia Rolim (1931-) (atualmente radicada em Curitiba) e Farnese de Andrade (1926-1996), bem como o paulista Vik Muniz (1961-), seguem a trilha deixada por Bispo, atestando o fato de que um corpo também se faz comos objetos e restos deixados pela incidência da linguagem. Fato é que o corpo se banha no mar da língua de umaMarinha, de Pancetti (1902-1958), com suas substâncias sonoras e imagéticas. O mistério do corpo falante (e dançante!) se dá exatamente porque há nele um para além da linguagem, que se ancora no olhar do Outro. Intrigante, inapreensível, inabordável, que sempre escapa e sonda o ser no seu mais íntimo foro. Que incomoda, cutuca, estoca e desconcerta, tal qual o olhar visto no filme O cão andaluz(1928), de Buñuel (1900-1983) e Dalí (1904-1989).

A política do corpo é a de fazer reintegrar algo que ficou para fora dele mesmo. O corpo reivindica ativamente seu quinhão de mais-de-gozar, sem que o sujeito facilmente se dê conta do seu ativismo. Corpo é borda gozosa. Freud (1905/2008, p.153-54) nos informa que a zona erógena se comporta como uma parte do aparelho genital, (…) e que a pele é a zona erógena por excelência (…)4. O corpo quer gozar com os seus próprios meios. O sujeito do desejo se levanta e vai à luta contra toda e qualquer tentativa de reduzir o corpo à carne – no show horrendo das carnificinas. O corpo quer recuperar sua potência gozosa, fruto da redução histerohistórica do sintoma que se põe na contramão dos discursos da ciência, do capitalismo e do mestre senhor, estes que insistem em situar o sujeito no lugar do mais aviltante objeto/abjeto, anunciando, deste modo, a véspera da barbárie. Sejamos o lobo do lobo do homem5.

Referências:​

Veja.abril.com.br (de 08.09.2010). Acesso em: 14.07.2019​

Veja.abril.com.br (de 13.09.2010). Acesso em: 14.07.2019​

Conferência em Genebra sobre o sintoma: transcrição da conferência pronunciada no dia 04 de outubro de 1975, no Centro Raymond de Saussure.​

“(…) En todo respecto se comporta como uma parte del aparato genital (…). La piel, que en determinados lugares del cuerpo se ha diferenciado en los órganos de los sentidos y se ha modificado hasta constituir una mucosa, y que es, por tanto, la zona erógena {por excelencia}. Freud (1901-1905). Três ensaios de teoria sexual. Buenos Aires: Amorrortu, 2008. Tradução livre do autor​

Veloso, Caetano. Língua.Em: Homem Comum, Universal Music, 2002.​

Para a visualização das obras dos artistas citados sugerimos o Google Imagens.

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