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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio XIV
A POLÍTICA DO CORPO ARTESER O CORPO
Ida Freitas

Recentemente, fui à exposição Björk digital e, apesar de minha pouca intimidade com a artista e sua obra, despertou-me curiosidade o fato de se tratar de uma exposição sobre o trabalho de uma cantora. Minha referência a Björk se restringia, até aqui, ao musical desconcertante “Dançando no escuro”, de Lars Von Trier (2000) e, de lá pra cá, a algumas poucas músicas que sempre me causaram certo arrepio na alma.

“Ainda que a música seja o principal elemento que tenha tornado Björk reconhecida mundialmente, a capacidade de unir o som às artes visuais e à tecnologia elevou-a ao patamar de uma das artistas mais vanguardistas de nosso tempo”, comenta o diretor cultural do MIS, Cleber Papa. Sendo assim, assumo minha ignorância, há algo a se aprender com a vanguarda de Björk.
A exposição contempla um álbum intitulado Vulnicura, que, segundo Björk, a aproximou involuntariamente da narrativa da tragédia grega. Vulnicura é um neologismo que condensa a palavra “vulnus”, que significa ferida em latim, e cura, portanto Vulnicura é uma criação a partir da profunda dor advinda do fim do casamento e separação de Björk e seu companheiro, como um processo de elaboração do luto da relação.

Com óculos de realidade virtual, somos envolvidos nas suas feridas, e nas sofridas e angustiantes canções de Björk, que as interpreta com sua voz e imagem virtual numa quase intimidade com nossos corpos, contando ao expectador, com muita intensidade, sobre sua dor, sua tragédia e seu processo de cura. Em algumas sonoridades e imagens, é como se fosse possível adentrar a angústia, senti-la, ouvi-la e vê-la no corpo da cantora.

Ficamos sentados num banquinho e com um mundo virtual em 3D à nossa volta, às vezes com belas paisagens da Islândia, outras em escuras cavernas onde o sofrimento de Björk desfila e se destila através de sua voz, seu canto, seu corpo em expressão aguda de dor. Não fosse o aviso para permanecermos sentados, sairíamos percorrendo a Islândia afora com Björk, uma experiência quase patética e nauseante para quem não está habituado.

O audiovisual de “Mouth mantra” se destaca de forma muito particular entre as outras músicas, porque o corpo aparece recortado, explorado e exposto através de uma câmera introduzida na boca de Björk e, não fosse pela voz e letra da música, seria uma relação quase imediata com o real do corpo. Na vermelhidão crua do interior da boca, saliva, umidade, língua, dentes se apresentam, dançam num estranho movimento involuntário, carne, em pedaços, entranhas contorcidas. Uma música foi criada a partir da perda da voz sofrida por Björk em consequência de nódulos nas cordas vocais.

Mouth mantra (Mantra da boca)​

Minha garganta estava entupida, minha boca estava costurada, proibida de fazer barulho, eu não era ouvida, remova este impedimento, minha garganta parece presa, eu não tinha permissão, eu não era ouvida

Há tristeza vocal, eu fui separada, do que posso fazer, do que sou capaz

Em voto de silêncio, explorar o espaço negativo, em volta de minha boca, ele implode, buraco negro, com o queixo caído, na mandíbula caída, queixo caído

Não estou machucada, não estou machucada

Este túnel permitiu milhares de sons, agradeço a este tronco, tubo de ruído.​

Para Björk, perder a voz, seu instrumento musical, a separa de seu fazer, sua arte de cantar, com efeito de castração no real do corpo, talvez por isso mais radicalmente real; neste caso, sua produção artística aí se apresenta. O vídeo de Mouth Mantra traz uma imagem estranhamente real, assim como a letra da música também parece colada ao real do corpo.

Uma maneira particular de a-bordar o corpo através da arte, mas não de uma arte que tem o compromisso com o belo, no sentido de se distanciar, encobrir, velar o horror da castração, ao contrário, uma arte que mostra, escancara a dor, a ferida, a angústia.
Logo após essa experiência, de embrulhar o estômago, um alento: “Sete ou oito peças para um ballet” e GIL, duas apresentações em um espetáculo do Grupo Corpo, que se contrastam entre si, já que a primeira traz a repetição em série de movimentos enfatizando o automatismo, o que pode ser lido como uma crítica à sociedade que homogeneíza e automatiza os corpos, aproximando-os das máquinas, dos robôs, algo extremamente contagiante, com uma bela trilha sonora do minimalista Phillipe Glass e Uakti. Em GIL, entretanto, há ginga, soltura, molejo na incorporação, pelos bailarinos, da releitura do universo musical de Gilberto Gil por ele próprio.

Corpos plenos de vitalidade, que se enlaçam, desenlaçam, harmônica e compassadamente, desarmônica e irreverentemente, numa construção desconstruída de movimentos de incansável força, delicadeza, beleza e ritmo.

O corpo que dança desafia o espaço e o tempo, faz-se metáfora, mas é também um corpo produto da técnica e da sensibilidade.
Dança, mudança, cor, muita cor, o Corpo, em corpos dançantes, despeja vida, arte, intensa emoção no expectador, que dessa experiencia não sai sem um fervilhar e uma dimensão renovada do próprio corpo.

A política do corpo expressa, através da arte dos corpos topológicos, furados, toros cantantes e dançantes, a circulação da linguagem entre o fora, dentro, imaginário, simbólico e real, enodados pelo sintoma arte.

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